Aconteceu o previsto: no anfiteatro da Fundação Friedrich Ebert (ligada ao SPD), em Berlim, na tarde do dia 18 de outubro, o Presidente da República Oriental do Uruguai, José Alberto “Pepe” Mujica Cordano, encantou a platéia. Porque Pepe Mujica é um dos raros políticos hoje que fala com a cabeça e também com o coração. Muitos políticos, aliás, não falam nem com uma nem com outro.
Também fala com humor, coisa rara hoje em dia, nesses dias de crises financeiras ricocheteando umas sobre as outras em escala mundial, e preciosa, vinda de quem passou anos de sua vida padecendo num dos piores cárceres da América Latina, o cruelmente chamado de “Libertad”. Dali podia ter saído um homem alquebrado, amargurado, ou um vingativo, como o personagem de Dumas, Pai, o Conde de Monte Cristo. Nada disso. Dali saiu um homem que olha para o presente e para o futuro com serenidade e confiança, sem remorso, mas também sem desprezo pelo passado.
Pepe Mujica começou com uma tirada de humor. “Como está seu país agora”, perguntou, em resumo, a mediadora do debate, “ele que já foi chamado de ‘a Suíça da América Latina?’”. Com a voz calma e o olhar matreiro (mas respeitoso), Pepe respondeu: “Não gosto desse apelido de ‘Suíça da América Latina’ para o meu país. Eu gosto dos Alpes, mas não gosto tanto dos relógios nem de tantos bancos num país”. Pronto: conquistou a platéia, se é que ela já não estava conquistada de antemão.
A partir daí ele passou a explicar por que, na sua visão, o Uruguai está “dando certo”, crescendo economicamente num ritmo acelerado há 8 anos. “8 anos”, insistiu, “sem uma única crise, fato inédito na história do nosso país”.
Segundo ele, há, é certo, uma conjuntura internacional favorável que, catapultando o preço das commodities, propiciou ao Uruguai o aumento de suas exportações de carne, ainda o principal produto do país.
Mas, sublinhou, o sucesso uruguaio de hoje nasce do fato de que “se aprende mais na adversidade do que na bonança”. Com as crises anteriores teria a maioria dos uruguaios aprendido que “não se pode esperar que o mercado faça justiça social”. “Se assim esperássemos, só conseguiríamos aprofundar a desigualdade”.
“O que temos para vender hoje vale mais”, mas a diferença é que hoje há no país “uma política de melhor distribuição de renda”. “Promovemos acordos entre empresários e trabalhadores, aumentamos o poder aquisitivo destes, aumentando também a demanda”.
“Também”, reconheceu, “nos ajuda a melhor situação econômica e social dos vizinhos, da Argentina e do Brasil”.
“Estamos agindo no sentido de nos precaver, pois sabemos que os efeitos, por exemplo, da crise aqui na Europa podem nos chegar de uma hora para outra. Temos capacidade hoje de cumprir com as obrigações do Estado por 2 ou 3 anos, mesmo que a crise nos afetasse gravemente desde hoje”.
“Quitamos nossa dívida com o FMI. Nos despedimos com respeito e cordialidade, porque nunca se sabe o que o futuro nos reserva, mas nos despedimos”, disse ele, arrancando novas gargalhadas e aplausos da platéia.
Pepe Mujica falou sobre uma variedade de temas, do meio ambiente ao respeito pelos direitos humanos. Agradeceu ao “povo alemão pela solidariedade quando muitos uruguaios eram perseguidos e tinham de viver no exílio”. Também comentou que o Uruguai está pronto para e vem conseguindo ampliar seus contatos comerciais com todo o mundo, com a China, a Índia, mas que não quer perder o contato com a Europa. “A China”, disse, “nos compra tudo. Mas em seguida, se deixarmos, nos vende tudo também”.
Reiterou sua confiança e esperança na educação, seguindo uma profunda lição da história uruguaia, país em que, devido às políticas de inspiração positivista desde o fim do século XIX, a educação se tornou das mais abrangentes e melhores da América Latina, ombreando com a da Cuba revolucionária.
Falou também do fato de seu país está ancorado no meio do maior plantel “ganadero” do mundo, com a Argentina e o Brasil ao lado. Igualmente, que pode ajudar a resolver questões antigas, tornando possível o acesso do Paraguai e da Bolívia ao mar, através do porto de Montevidéu. Assim mesmo, reconheceu a necessidade de diversificar a economia, em particular através da ampliação, por exemplo, da exportação de serviços na área agro-pecuária. “Nossa industrialização no campo”, disse, “não deve depender de chaminés, mas de talento”.
Problemas? Sim. Por exemplo: uma baixa taxa de natalidade. Outro: a desigualdade entre o sul do país e o norte, onde a renda salarial média é a metade daquela. Mas o fundamento, para ele, para se enfrentar esses problemas é a solidariedade. “O homem”, disse, “não pode viver na solidão. Está na nossa memória genética. Em termos modernos é possível imaginar sociedades onde o ‘meu’ e o ‘teu’ não nos separem. Mas não podem ser sociedades pobres, favelas. É necessário ter conhecimento, cultura, saber. Sem a criação de conhecimento e riqueza, uma sociedade solidária não se torna possível”. Por isso, ressaltou, os socialistas lutamos dentro dos marcos do atual sistema, para faze-lo funcionar para o bem da maioria. “Não se tem o direito de sacrificar os homens reais em nome de uma utopia que alguém tenha na cabeça”. Mas deixou claro: “Socialismo? Levo na garganta e no coração”. E arrematou:
– O Homo Sapiens é um bicho socialista.
Aplausos frenéticos. E aqui nessa Alemanha onde, às vezes, a palavra “socialismo” provoca erisipela ou sorrisinhos de mofa.
Texto e foto: Flavio Aguiar para Carta Maior
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