Um anúncio feito no final de 2012 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de que iria “voltar a andar pelo país”, atiçou obviamente a imprensa e a oposição, que começaram a falar sobre o incerto. E trouxe à lembrança as peripécias da Caravana da Cidadania, cuja primeira edição completará 20 anos no próximo mês de abril – haveria uma segunda em setembro e outras nos anos seguintes, pelo Norte e pelo Sul, totalizando mais de 500 cidades. Lula descarta relação entre aquela caravana e as viagens que pretende fazer neste ano. Mas tanto naquele momento como agora há os comentaristas habituais identificando supostas intenções – e, de olho em 2014, tentando atingir o legado do ex-presidente.
Durante 20 dias, de 23 de abril a 12 de maio de 1993, a trupe liderada por Lula percorreu 4.500 quilômetros, visitando quase 60 cidades em sete estados, mostrando um país pouco visto, pouco falado e muito maltratado. Não foi uma visita pelas capitais ou pela orla brasileira, mas pelos chamados grotões, lugares distantes do noticiário e da ação do Estado. Como cantou Milton Nascimento, “ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país”..
Além de andar por onde ninguém queria ir, Lula inovou: em vez de discursar, ele entrevistava as pessoas, perguntava como elas viviam ali. Colecionou histórias dramáticas e alguns relatos pessoais, como o de uma senhora que revelou estar insatisfeita com o marido, que bebia muito. Deu bronca em um outro que contou, aos 41 anos, ter 12 filhos. E conversou com um senhor que a princípio ficou nervoso diante do “alto-falante” – como ele chamava o microfone –, mas depois não queria largá-lo. E disse a Lula: “O senhor me desculpe, mas nunca peguei no alto-falante, e agora eu vou falar!”
O projeto original das caravanas é de 1989, mas saiu do papel apenas em 1993. O objetivo, segundo seus idealizadores: levar Lula ao encontro do Brasil real. O jornalista Ricardo Kotscho, ex-assessor de imprensa de Lula, contaria depois que mesmo internamente, no PT, houve resistência. Alguns disseram, com certa dose de razão: “Cidadania? O povo desses lugares por onde vocês vão passar nem sabe o que é isso”.
Parada no acampamento onde viviam 25 famílias: seis quilômetros de caminhada para conseguir água (Foto: Protásio Nene/Estadão)
Combate à fome – O Brasil de 1993 tinha acabado de derrubar o presidente Fernando Collor de Mello, substituído pelo vice Itamar Franco. Idealizador do chamado governo paralelo, Lula apresentou a Itamar um plano de combate à fome. Apenas dois dias depois do fim da caravana, em 14 de maio, o governo lançou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, tendo à frente o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o bispo dom Mauro Morelli, da diocese de Duque de Caxias (RJ). Nos milhares de quilômetros percorridos pela trupe, não faltaram exemplos de que a pobreza deveria ser uma questão prioritária para qualquer governante. E a avaliação corrente é de que muito do que se aplicaria posteriormente, já no governo Lula, começou a ser esboçado naquela viagem.
Passaram-se 20 anos, com dois períodos bem distintos: a primeira metade teve como grande marco a estabilização da moeda, enquanto a segunda iniciou um processo gradual de redução da pobreza. Dos últimos dez anos, oito tiveram o próprio Lula como presidente, que fez sua sucessora, Dilma Rousseff. Ainda que continue sendo um país muito desigual, nesse período o Brasil tirou milhões de pessoas da linha da pobreza, estabeleceu novos padrões de consumo e reverteu a tendência de informalização do mercado de trabalho. Se a comparação for com 1993, o número de empregos formais no país mais que dobrou.
‘Cutucar o diabo’ – Dois dias depois do plebiscito nacional sobre forma (república ou monarquia) e sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), em 23 de abril de 1993 Lula desembarcou em Recife e fez uma declaração que de certa forma antecipou uma preocupação que se tornaria marca de seu governo: “Quero colocar os famintos do país no cenário político. A fome deve ser assumida não só pelo governo, mas pelos que comem”. Sobre a caravana, manifestou incerteza. “Não sei o que vamos encontrar. O que sei é que vamos cutucar esse diabo com vara curta.”
O trajeto iria reconstituir a trajetória do próprio Lula, que em 1952, aos 7 anos, saiu de Garanhuns com a mãe e sete irmãos, rumo a São Paulo. Durante 20 dias, dois ônibus – um com Lula e convidados, outro com jornalistas – percorreriam dezenas de municípios do Nordeste e do Sudeste, cortando estradas de terra que cruzavam localidades quase esquecidas, distantes do “desenvolvimento” e com dificuldades de comunicação – ainda não existiam celular nem internet, o que muitas vezes causava aflição. Em certo local da Bahia, por exemplo, Kotscho chegou ávido à recepção de um hotel perguntando se ali havia jornais. A resposta foi singela: “Tem, mas é de outros dias”.
Em 12 daqueles 20 dias, a caravana percorreu quatro estados do Nordeste, “a região semiárida mais povoada do mundo”, como lembrou o geógrafo Aziz Ab’Saber, um estimulador da viagem pelo Brasil e que morreu em março de 2012. Percorreria ainda a região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, uma das mais pobres do país, Rio de Janeiro e São Paulo.
O geógrafo e o metalúrgico Lula com o professor da USP Aziz Ab’Saber, estimulador da viagem pelo Brasil, que participou de algumas caravanas (Foto: Sérgio Buarque de Holanda / Fundação Perseu Abramo)
Uma das primeiras paradas no Brasil real foi em um acampamento no Sítio Poço Doce, em São Bento do Una, agreste pernambucano. Ali ficavam 25 famílias, tentando sobreviver, acordando de madrugada para andar seis quilômetros atrás de água. “Toda a produção que existe nesta terra é nossa. Esta área é totalmente abandonada, menos o roçado que a gente fez. A única vez que ele (proprietário) apareceu aqui foi para nos intimidar”, relatou o representante do acampamento, José Maria da Silva. Para aquelas pessoas, não era incomum se alimentar de um peixinho chamado chupa-pedra. “É a descoberta de sobreviver por meio do que sobrevive na lama”, observou o professor Aziz, conforme anotou o jornalista e escritor Zuenir Ventura, que também andou uns dias por lá.
No meio da conversa, um violão chega às mãos de Hilton Acioli – autor, em 1989, do jingle “Lula lá” e integrante do Trio Marayá, nos anos 1960. E ele canta a música-tema da caravana, Clareia:
“Duvido que um homem queira tudo/ Quando tem quem não tem nada/Desde que nasceu”.
Coordenador da caravana, Francisco Rocha da Silva, o Rochinha, lembrou em entrevista à TVT que o objetivo era “ouvir o que as pessoas pensavam”. Ele chefiou a equipe que andou antes para mapear os locais. A viagem foi bem planejada, mas todo roteiro acaba tendo seus desvios. Em muitos lugares, a população bloqueava a estrada e fazia com que os ônibus desviassem para este ou aquele lugar. “Na grande maioria dos casos, a gente tinha de sair da trajetória”, disse Rochinha.
Faroeste sertanejo – O marco da caravana de 1993 foi, certamente, a passagem pela cidade de Canapi, no sertão de Alagoas. Local emblemático, por ser a terra natal da família Malta, de Rosane Collor, primeira-dama até o ano anterior. Lugar de pistoleiros e de um certo faroeste. Em 1991, um dos irmãos de Rosane havia atirado contra o prefeito, e o bar onde a história aconteceu quase virou atração turística. Em agosto de 1992, Ricardo e seu irmão Ronaldo Kotscho, fotógrafo, foram a Canapi, a trabalho, e acabaram expulsos por um segurança dos Malta.
“Era uma temeridade (ir a Canapi). Até eu dei um passo atrás. Mas o presidente Lula deixou muito claro que era uma das cidades em que ele fazia questão de passar”, recordou Rochinha. Passou, foi recebido por uma multidão, andou pelas ruas e nada anormal aconteceu. Susto, com a visão do Centro Integrado de Atendimento à Criança (Ciac), uma obra luxuosa no meio da pobreza e sem funcionar – batizada por Zuenir Ventura como um “monumento à insensatez”. Ele descreveria assim o Ciac: “Construído num descampado, o visitante se aproxima dele – ou ele do visitante, não se sabe bem – como se fosse uma miragem, uma ilusão de ótica provocada pela inclemência do sol”.
Em Águas Belas, Pernambuco, Lula falou a uma multidão que se alimentava de palma, planta típica da caatinga, usada para alimentar o gado em estiagens prolongadas (Foto: Protásio Nene / Estadão)
Atual secretário de Direitos Humanos do município de São Paulo, Rogério Sottili acompanhou o grupo que percorreu o país antes de Lula para mapear cada local, fazer contatos e identificar possíveis problemas. Ele lembra que a recomendação foi para não passar por Canapi. “Ninguém falou com a gente. Todo mundo andava armado”, recorda Sottili, que na época trabalhava na Secretaria Agrária do PT.
Em sua primeira fase, o grupo precursor era formado por Sottili, a jornalista Cyntia Campos e três seguranças, também responsáveis pela logística. O diagnóstico era feito com movimentos sociais, sindicatos, associações, igrejas e, quando possível, prefeituras, além dos contatos com a imprensa local. As indicações que seriam usadas na caravana eram minuciosas – chegavam a apontar, por exemplo, que em determinado quilômetro de uma estrada havia um buraco. Em São Paulo, pessoas como Clara Ant e José Graziano preparavam relatórios detalhados com indicadores econômicos e sociais, entre outras informações. Clara é assessora de Lula até hoje.
Graziano integraria o Programa Fome Zero, implementado no início do governo do petista, e em 2011 tornou-se o primeiro brasileiro a se tornar diretor-geral da FAO.
Achismo – Para José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão de Lula, a caravana representou um segundo retorno à terra de origem. Ele esteve lá no final de 1964, após cinco dias de viagem. Ficou 15, ganhou um jipe no bingo com um amigo, vendeu e, na volta a São Paulo, comprou sua primeira casa. Em 1993, constatou que muita coisa ainda não tinha mudado, com o poder local concentrado em determinadas famílias e regiões isoladas. Além disso, permanece o desconhecimento em relação à realidade do Norte/Nordeste. “Tem um monte de achismo”, diz Frei Chico.
A ignorância também se dá em relação aos fatos históricos. Ele cita casos como o de Delmiro Gouveia, empresário precursor assassinado em 1917 que hoje dá nome a uma cidade no sertão de Alagoas, na divisa com Bahia, Pernambuco e Sergipe. Ou sobre a cidade baiana de Cachoeira, pioneira na luta pela independência do Brasil.
Duas coisas, particularmente, impressionaram Frei Chico durante a viagem: a realidade dos trabalhadores do sisal, muitos deles mutilados, e a contaminação do Rio Jequitinhonha, em Minas Gerais, por mercúrio, usado na extração do ouro. “Acho que isso (preservação ambiental) é o grande drama brasileiro, a grande luta nossa no futuro”, afirma, acrescentando que é possível “crescer sem destruir”.
Ele também guardou boas lembranças, como uma disputa de sanfoneiros no interior da Bahia, que lamenta não ter visto até o fim. Do ponto de vista político, Frei Chico percebeu a necessidade de buscar união mesmo com aqueles com outros pontos de vista, para começar a mudar o país – e a situação melhorou bastante de lá para cá. Com certeza, observa, “a caravana ajudou muito o Lula a formar a sua visão de Brasil”. Sottili reforça: “Acima de tudo, ele queria mostrar o país”.
Debate subterrâneo – Duas décadas separam iniciativas semelhantes, o conselho de combate à fome instalado pelo presidente Itamar Franco por sugestão de Lula e uma parceria entre a Comissão da União Africana, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e o Instituto Lula, a fim de discutir soluções para o mesmo problema na África. Uma reunião com líderes locais e mundiais está prevista para o início de março, em Adis Abeba, na Etiópia.
Isso remete a um debate ainda subterrâneo, que já começou a ser feito pela imprensa, sobre as realizações do governo Lula. Este mês, o ex-ministro Luiz Dulci lança um livro justamente para analisar “as escolhas realizadas nos dois últimos mandatos presidenciais”. Muitas dessas opções eram discutidas no período da caravana: valorização do mercado interno, maior presença do Estado como indutor da economia, incentivo ao desenvolvimento regional e prioridade ao social.
“Estatisticamente, em 2011 o Brasil atingiu o menor nível de desigualdade de sua história”, declarou recentemente o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Neri. Ele lembra que a desigualdade brasileira ainda é uma das 15 maiores do mundo, mas observa: “Sem as políticas redistributivas patrocinadas pelo Estado brasileiro, a desigualdade teria caído 36% menos na década”.
Rogério Sottili não tem dúvida de que as diversas políticas públicas – como o Bolsa Família e o Luz para Todos – implementadas a partir do governo Lula tiveram como nascedouro as Caravanas da Cidadania, da qual ele foi precursor na primeira edição, em 1993. “O Estado chegou a esses lugares”, observa.
Revista do Brasil por: Vitor Nuzzi
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