Para o diretor-pedagógico do instituto que leva o nome do pensador brasileiro, seu mais famoso livro trouxe uma nova visão para a perspectiva opressor e oprimido, e na relação entre professor e aluno
Paulo Freire estava no exílio no Chile, em 1968, trabalhando no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (ICIRA), quando lançou Pedagogia do Oprimido. O livro viria a ser a grande obra da vida do educador e pensador, traduzido para diversas línguas e revelando a gênese do pensamento freiriano ao esmiuçar as relações entre opressores e oprimidos e, a partir daí, sugerir a emancipação do indivíduo por meio do pensamento crítico e libertário.
Patrono da Educação Brasileira, doutor honoris causa por 27 universidades, seu trabalho é considerado “Patrimônio Documental da Humanidade” pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Para marcar a data do seu aniversário – Paulo Freire completaria 97 anos no último dia 19 de setembro – e celebrar os 50 anos de publicação da Pedagogia do Oprimido, o instituto que leva seu nome planejou a “Semana Paulo Freire”, com vídeo-aulas de Moacir Gadotti, Mário Sérgio Cortella, Carlos Rodrigues Brandão, José Eustáquio Romão, Paulo Roberto Padilha, Ângela Biz Antunes, Francisca Pini, Sônia Couto e Sheila Ceccon.
“A educação não resolve tudo, mas tudo passa pela educação. Ela tem muito a contribuir para uma sociedade mais justa, mais equânime, para um mundo mais sustentável, uma vida mais feliz. É isso que nós trabalhamos em todos os projetos que fazemos”, afirma Paulo Roberto Padilha, diretor-pedagógico do Instituto Paulo Freire.
Nessa entrevista à RBA, Padilha fala sobre a influência de Paulo Freire na educação mundial, a importância e atualidade da sua obra para o Brasil conflagrado de 2018, faz ponderações sobre o processo de “demonização” do pensamento freiriano em certos setores da sociedade brasileira, e explica quais são os caminhos para manter vivo e atuante o seu legado.
Qual a importância do livro Pedagogia do Oprimido 50 anos depois do seu lançamento?
É um livro emblemático, que estabelece as bases do pensamento do Paulo Freire na relação opressão e oprimido. Um livro que chegou a todo mundo rapidamente e que, nestes 50 anos, foi traduzido para inúmeras línguas. Ele traz uma nova visão de mundo, de relações humanas, sobretudo na perspectiva opressor e oprimido, e também na relação pedagógica entre professor e aluno. Traz a novidade da relação humanizada, para superar a desumanização de uma educação que ele chamou de “bancária’.
O livro segue sendo atual para a realidade do Brasil e do mundo?
Nós que pesquisamos Paulo Freire e seu legado, não somos discípulos nem seguidores, puramente. Discípulo é aquele que segue cegamente. Nós não, a gente pesquisa a obra, e ao pesquisar a obra, a cada leitura, descobre e redescobre sua atualidade, mas não só para o momento presente. Ele é um guia e uma inspiração para a educação do futuro.
Muitos dizem que o livro é muito crítico — e ele é um livro crítico —, mas no sentido amargo da palavra, mas não: ele diz que a relação com o oprimido é feita e construída por ele. E estimula fundamentos básicos para a vida humana, como o diálogo, a amorosidade, a humanização, a interatividade. São várias palavras que, na leitura desse livro, você vai percebendo como ele é atual.
O capítulo quatro do livro, que é um dos mais importantes, fala da teoria da ação antidialógica e da ação dialógica, mostra como essa dominação do opressor contra o oprimido acontece, por meio da tentativa de conquista permanente de um pelo outro, da divisão para manter a opressão, dividir para enfraquecer, da manipulação através dos meios de comunicação de massa, dessa invasão cultural permanente que é uma forma de penetrar na cultura do outro impondo sua lógica, sua visão de mundo, quase cancelando a visão do oprimido e sua própria cultura.
Então, ele propõe, nos anos 60, algo que hoje, com a atual crise internacional e brasileira, a gente vê que é muito necessário nos dias atuais. Por isso que nos inspira, nos remete a perspectiva da ação dialógica, que exige a colaboração, a união com as pessoas, a organização coletiva, respeito a adversidade, assuntos que são tratados hoje, respeito às diferenças, às todas as etnias, todas religiosidades, sexualidades, faixas etárias. Então Paulo Freire é atual porque ele respeita a pessoa, a dignidade humana.
Paulo Freire é uma referência para muitos, mas também desperta críticas de outros tantos. A que se deve isso?
Ao contrário do que muitos dizem, ele jamais poderia ser um doutrinador, ou querer destruir a educação brasileira, como temos escutado em algumas mídias ou nas redes sociais, por gente que certamente desconhece Paulo Freire. Pelo contrário, ele era um humanista cristão, por conta da sua perspectiva de inclusão, de dignidade, em tentar fazer com que a educação não reproduzisse o que a sociedade tem feito historicamente.
Por isso que, depois de 50 anos, é um livro muito atual, prazeroso de ler, convida sempre a uma reflexão sobre o que acontece no mundo. E fala que antes de qualquer projeto humano, temos que ler a realidade, conhecer para depois intervir.
Como se chegou a essa espécie de “demonização” de sua obra e pessoa, vigente em alguns setores da sociedade?
Isto tem muito a ver com o que está acontecendo no país hoje. Vivemos num Estado de exceção, num Estado em que a liberdade de expressão ainda é permitida, mas com restrições, sobretudo nesse processo político de eleições, no acirramento de forças de direita e extrema-direita.
Paulo Freire foi, enquanto cidadão, fundador do PT, e o PT foi demonizado nos últimos anos, a partir do golpe contra a presidenta Dilma, a prisão de Lula. Então há um contexto, com meios poderosos de comunicação de massa comprometidos com os opressores, comprometidos com a sociedade injusta. Eles constroem uma lógica e plantam o acirramento da intolerância. Então a intolerância acaba sendo, para eles, algo positivo.
E diria mais, a população brasileira acabou não se educando politicamente, como nós gostaríamos. A própria escola foi abandonada, o analfabetismo de 11 milhões de brasileiros está inerte. De 7,2% da população em 2017, o Brasil continuou com 7% em 2018 – menos de 300 mil pessoas foram alfabetizadas em um ano.
A lógica da cultura sendo destruída, abandonada. Todas as ações do atual governo são um conjunto de medidas que negam o direito e fragilizam ainda mais os ‘esfarrapados do mundo’, como diria Paulo Freire.
O pensamento libertário de Paulo Freire incomoda o sistema dominante?
É claro que quando você tem uma teoria super consistente e que coloca na mesa a situação concreta em que as pessoas vivem, de opressão, e incentiva que elas reflitam, pensem sobre sua vida, sua existência, sobre as relações humanas e de trabalho injustas, é claro que os poderosos e os opressores não querem que isso venha à tona.
Então acabam demonizando e estimulando inclusive a violência, a intolerância. Paulo Freire falava que o “conflito é necessário à educação”, mas não é possível dialogar com quem é intolerante e não escuta. Só mesmo o processo de educação de médio e longo prazo seria capaz de reverter essa história. Claro que temos diante de nós o capitalismo, o neoliberalismo, as potências mundiais, o poder econômico, onde poucas corporações ditam as regras da política.
Então hoje os políticos também estão submetidos, rendidos e vendidos a essa lógica antidialógica que não contribui em nada para que figuras como Paulo Freire sejam valorizadas, como são no mundo inteiro. Mas aqui no Brasil, por conta dessa lógica reacionária, não interessa aos poderosos e a quem se alimenta da opressão.
Como diria Paulo Freire, “a palavra abre a consciência”, coloca em risco o status quo, as condições do presente, onde os benefícios são sempre para os mesmos. Então estamos num Estado de exceção que tem reflexos diretos na educação, mas nem assim a gente se sente vencido ou enfraquecido, porque a gente percebe a força e a capacidade da obra de Paulo Freire. Se diz que a crise gera oportunidade… Paulo Freire diria que a “crise gera gravidez”, a gravidez de ideias, perspectivas e propostas. Então estamos muito desafiados hoje a buscar alternativas e soluções.
Depois de Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire escreve Pedagogia da Esperança. Como foi essa evolução em seu pensamento?
As bases do seu pensamento estão no seu primeiro livro, que se chama Educação e Atualidade Brasileira, publicado em 1959. Então ele vem, reiteradamente, denunciando a existência de opressores e oprimidos; ele retoma depois de vinte anos as teses da Pedagogia do Oprimido e escreve a Pedagogia da Esperança, faz críticas. Pega a questão da conscientização, muito valorizada na Pedagogia do Oprimido, e diz que só ela “não dá conta”, que a conscientização precisa vir associada a “ação transformadora”.
A partir do momento em que eu acabo conquistando uma consciência crítica, parto da consciência crítica para uma consciência científica, mas não basta também, tem que ter uma consciência política e transformadora, transcendo essa análise objetiva da sociedade, e faço uma análise da cultura, da sensibilidade. Paulo Freire acreditava em Deus, um humanista cristão que era capaz de juntar numa mesma imagem Cristo e Lenin, essa junção complementar. Paulo Freire, em suas publicações posteriores, discute a ecologia, a sustentabilidade, questiona a destruição da natureza.
Quais alternativas existem para, em 2018, tentar pôr em prática o pensamento freiriano?
Lembro de alguns neologismos que Paulo Freire criou, como “esperança sem espera”, porque não basta ter esperança, tem que partir para a ação. Ou “paciência impaciente”, que quer dizer que a sua paciência tem limite. Quando se trata da injustiça, da ofensa e degradação humana, nós temos que reagir, resistir.
E como alternativa de mudança desse contexto atual, nós no Instituto Paulo Freire e em várias partes do mundo, estamos resistindo bravamente, dando ênfase aos 50 anos da Pedagogia do Oprimido e, ao fazer isso, a gente também revive a história da educação crítica brasileira, da educação popular e cidadã.
Estamos lançando agora Reiventando Freire, com 63 artigos de freirianos e freirianas do mundo, todos eles falando do que fazemos há 27 anos no Instituto, onde temos estimulado todas as instâncias e modalidades de educação a estudarem Paulo Freire e pesquisar a partir da sua obra.
Neste livro, o Mário Sérgio Cortella diz que “Paulo Freire não está morto, está sempre presente”, nos inspirando no presente. O artigo do Cortela chama-se Utopias e Esperanças, a utopia desse autor tão importante ser valorizado e respeitado no Brasil, não ser ofendido como tem sido, numa perspectiva violenta e intolerante.
Falta então a gente conquistar mais universidades, tem muito pouca presença de Paulo Freire nas universidades, mas a gente tem nesses anos todos de trabalho alcançado muita gente pelo Brasil, muitos projetos.
Como vai ser a Semana Paulo Freire?
É uma semana em que a gente discute, por sete dias seguidos, o livro Pedagogia do Oprimido com Moacir Gadotti, Mário Sérgio Cortella, Carlos Rodrigues Brandão, José Eustáquio Romão e vários educadores do Instituto fortalecendo esse legado.
A gente comemora e aproveita pra mostrar para as pessoas que pouco conhecem Paulo Freire, que ele não era um cara rançoso, vingativo, muito pelo contrário, ele jamais seria, na sua perspectiva teórica e prática, um doutrinador, como vimos a imprensa noticiar. Paulo Freire fala de amorosidade, de felicidade, justiça, superação da opressão, fala de tolerância. Como alguém que fala de tolerância pode plantar a guerra? A gente quer a humanização dos homens, e as escolas ainda têm trabalhado na perspectiva da desumanização.
Paulo Freire fala, na Pedagogia do Oprimido, que o diálogo “não impõe”, “não domestica”, “não vive de slogans”. E nós vivemos tempos de slogans que são facilmente repetidos, sem reflexão, sem consciência crítica. E a gente planta outra perspectiva, a da educação continuada, em que se educa a vida inteira, uma escola que não desvaloriza o estudante, pelo contrário, onde ele tenha o direito, ao contrário do que diz a “Escola sem Partido”, a reforma do ensino médio, muito frágil na perspectiva curricular.
Chamo isso de uma educação que parte da cultura da pessoa e permite que suas subjetividades estejam presentes no diálogo, e então a gente define o diálogo da cultura com a educação, da educação com a ciência, da ciência com a política.
Paulo Freire tem mais reconhecimento no exterior do que no Brasil?
No livro Reiventando Freire, Martin Carnoy escreve o artigo “Paulo Freire continua relevante para a educação dos Estados Unidos”. Ele diz que até hoje, quando se fala em Paulo Freire nos Estados Unidos, num simpósio, num seminário, há muito interesse em participar, as pessoas ainda são ávidas em entender e conhecer o que ele escreveu.
A gente recebe no Brasil comitivas da África, da Europa, dos Estados Unidos, da Ásia, como Japão e China, até porque a Pedagogia do Oprimido foi publicada nessas línguas todas. O Paulo Freire ainda é mais valorizado fora do Brasil do que no Brasil. Por essa razão, desde 1998 a gente realiza encontros internacionais, o primeiro foi em São Paulo, depois já passou por oito países, até chegar neste de agora, na Colômbia, o 11º Encontro Internacional.
Participam, em média, nestes encontros, de 15 a 20 países, que desenvolvem trabalhos e pesquisas na educação. Esse evento na Colômbia tem o desejo de fortalecer lá o legado freiriano, que tem sido pouco trabalhado na América Latina, com exceção do Brasil. Temos sede no Chile, agora na Colômbia, na Argentina, temos pessoas associadas a nossa rede UniFreire, de mais de 100 países.
Fonte: RBA – www.redebrasil.atual.com.br | Escrito por Luciano Velleda