Uma maré de solidariedade ao povo palestino percorre o mundo nos últimos dois meses. Como em outros tempos o repúdio à intervenção dos EUA no Vietnã ou a campanha pelo fim do apartheid na África do Sul, a condenação dos crimes contra a humanidade cometidos por Israel em Gaza se tornou uma dessas causas capazes de unir, no mesmo sentimento, as pessoas que compartilham uma noção essencial de justiça, acima das fronteiras étnicas e religiosas. É inaceitável a indiferença ou a conivência com o massacre de civis, a destruição de suas casas, a opressão cotidiana em Gaza e Cisjordânia, a intransigência de Israel em perpetuar a ocupação ilegal que se prolonga desde 1967. O PT, fiel à sua tradição internacionalista e aos seus valores humanistas, manifestou-se nesse episódio do lado certo, somando sua voz aos que defendem o fim imediato da ocupação e a criação de um Estado palestino soberano, viável e em bases dignas.
Em artigo divulgado no espaço virtual petista (www.pt.org.br), o economista Paul Singer, um veterano lutador do povo brasileiro, também defende o fim dos ataques em Gaza, mas critica os termos em que tem se expressado o repúdio geral à conduta de Israel. Na sua opinião, é necessário condenar em igual medida a violência praticada por israelenses e por palestinos. Suas ponderações, embora expressem uma aspiração sincera pela paz, têm como fio condutor um raciocínio equivocado, muito presente na cobertura da mídia: o de abordar o conflito a partir de uma suposta simetria entre palestinos e israelenses. Trata-se de uma ideia simples e elegante – por isso mesmo, tentadora. Diante de dois povos em luta pelo mesmo território, cada qual com seus argumentos, a atitude mais sensata seria a equidistância. Assim, o PT é criticado por tomar partido, em lugar de simplesmente se ater a uma defesa (abstrata) da paz, do diálogo, da compreensão mútua.
Um mínimo de reflexão sobre o conflito israelense-palestino e suas raízes históricas já é suficiente para demonstrar o quanto é falaciosa a crença de que os motivos dos dois lados se equivalem. O Estado de Israel foi criado com base no confisco das terras dos palestinos e na negação dos seus direitos. A violência está embutida no projeto sionista desde a sua concepção, no final do século XIX, quando Theodor Herzl formulou a palavra-de-ordem de “uma terra sem povo” (a Palestina) “para um povo sem terra” (os judeus). Estava lançada ali a semente da “limpeza étnica” que acompanhou a fundação do Estado de Israel, em 1948, quando 700 mil árabes, moradores da região desde tempos imemoriais, foram obrigados a abandonar seus lares, conforme o relato incontestado de historiadores israelenses como Benny Morris e Tom Segev. Hoje os refugiados que vivem fora da Palestina são 4,2 milhões, na sua maioria abrigados precariamente em acampamentos nos países árabes. Outros 1,5 milhão de refugiados sobrevivem nos territórios ocupados, em condições sub-humanas. Os palestinos são proibidos de retornar para sua terra de origem. Já os judeus, nascidos em qualquer parte do mundo, têm assegurado o direito de imigrar para Israel, onde recebem automaticamente cidadania e todo tipo de ajuda.
Os palestinos fizeram imensas concessões em nome da paz. Em 1993, nos Acordos de Oslo, seu principal líder, Yasser Arafat, reconheceu a existência de Israel nas suas fronteiras oficiais. Em troca, obteve uma limitada autonomia administrativa nas cidades palestinas e o compromisso da abertura de negociações com vistas à criação de um Estado Palestino em uma área – Cisjordânia e Gaza – equivalente a apenas 25% da Palestina original. Na época, o Hamas era uma força política minoritária, isolada em sua rejeição ao diálogo. Nos quinze anos que se passaram, as promessas israelenses foram rasgadas, uma a uma. A instalação de colonos judeus nos territórios ocupados se acelerou, em vez de se interromper, e a população desses assentamentos mais do que dobrou. A vida cotidiana nos territórios ocupados se tornou um inferno, com as centenas de postos militares de controle, o impedimento do trabalho em Israel e, finalmente, a construção do “muro da vergonha”.
Nesse contexto, como é possível imaginar qualquer tipo de equilíbrio entre opressores e oprimidos? No título do seu artigo, o companheiro Paul Singer afirma que “não basta condenar os massacres, é preciso ir às causas”. Qual será o motivo que leva as forças de ocupação israelense a praticar diariamente a violência contra os moradores de Gaza e Cisjordânia? A explicação lógica, apontada por jornalistas como o inglês Robert Fisk e o israelense Uri Avnery, é o intuito de tornar a vida dos palestinos tão insuportável que uma parcela cada vez maior deles acabe optando pelo exílio, enquanto os restantes se resignariam a uma semi-autonomia sob o jugo israelense.
Quanto à cota de truculência que cabe aos palestinos, qualquer julgamento ético deve levar em conta a tradição filosófica ocidental, consagrada desde o Iluminismo, que reconhece o direito de revolta contra a opressão, a tirania. Nelson Mandela escreveu que “é sempre o opressor, e não o oprimido, quem determina a forma da luta”. A violência palestina, em escala muito menor que a dos israelenses, surge como uma reação à injustiça primordial que é a usurpação dos direitos. E é importante assinalar que os foguetes artesanais disparados pelos palestinos contra o território israelense constituem, do ponto de vista militar, a única arma ao alcance do Hamas, além dos homens-bombas – recurso desesperado que, felizmente, parece ter caído em desuso. O fato é que, nos doze meses que antecederam as recentes atrocidades de Israel em Gaza, não ocorreu nenhuma vítima israelense em conseqüência de ataques do Hamas. Nenhuma, nem mesmo um ferido. Já os israelenses, usando aqueles disparos inúteis como pretexto, mataram entre dezembro e janeiro mais de 1.300 pessoas, das quais dois terços eram não combatentes e um terço tinha menos de 18 anos.
O jornalista israelense Gideon Levy perguntou ao final de 2006, num contexto semelhante ao atual: se o Hamas não tivesse disparado nenhum foguete, o que teria acontecido? Israel teria levantado o bloqueio a Gaza? Teria libertado algum dos 11 mil prisioneiros palestinos? É claro que não. A conclusão de Levy: “Se os habitantes de Gaza tivessem permanecido tranquilos, como Israel gostaria, sua causa teria desaparecido da agenda, aqui e no resto do mundo.”
O Hamas não é uma “organização terrorista”, como a definiu George W. Bush, e sim uma força política legítima, com grande representatividade nos territórios ocupados. Seus dirigentes chegaram ao “governo” palestino por escolha da população, em eleições democráticas. Recrimina-se ao Hamas o não-reconhecimento de Israel. E Israel por acaso reconhece o direito dos palestinos a construir seu próprio Estado, tal como prescrevem as resoluções das Nações Unidas?
Na realidade, pouco importa se o Hamas reconhece ou não o Estado de Israel. A existência desse país – o único, no mundo inteiro, em que a cidadania está condicionada a critérios étnicos e religiosos – é um fato consumado que a imensa maioria dos palestinos admite ser impossível reverter, conforme mostram as pesquisas de opinião. Raríssimos entre eles apoiariam uma guerra para destruir Israel, o que seria, aliás, uma opção moralmente injustificável. Expulsar os israelenses da Palestina seria uma atrocidade tão brutal quanto foi a expulsão dos palestinos, 60 anos atrás.
A roda da história não retrocede e hoje já não se discute a ilegitimidade do empreendimento sionista e sim questões bem concretas: a volta de Israel às suas fronteiras de 1967, o desmantelamento das colônias ilegais na Cisjordânia, o Estado Palestino com capital em Jerusalém Oriental, o retorno negociado dos refugiados que queiram regressar. Cogita-se cada vez mais, entre os opositores da ocupação, em agregar um tópico até agora excluído das conversações – o pagamento de reparações que aliviem ao menos simbolicamente os danos incalculáveis que o projeto sionista impôs à população palestina. Israel deve desculpas pelo mal que fez e continua fazendo.
Estarão os israelenses dispostos a impor um fim à conduta criminosa dos seus governantes? O apoio maciço aos partidos reacionários nas recentes eleições sugere que não. Seria ingênuo apostar que a pura força dos argumentos possa convencer o Estado sionista a abrir mão da intransigência e da brutalidade. Israel só aceitará negociações sérias mediante fortes pressões. O presidente estadunidense Barack Obama possui cacife político suficiente para imprimir um novo rumo no Oriente Médio, mas não parece interessado nisso. Os brasileiros engajados na luta pela paz devem, portanto, pensar em atitudes efetivas de pressão para obrigar Israel a seguir o caminho da legalidade internacional. O rompimento das relações diplomáticas, a exemplo do que fez a Venezuela, seria uma medida contundente. O boicote econômico, defendido pela escritora canadense Naomi Klein, também merece o apoio de quem pretende batalhar pela paz não só com boas intenções, mas com iniciativas práticas.
Singer defende, com muita ênfase, o direito dos israelenses a “uma vida em paz”, e deixa implícito que o mesmo vale para os palestinos. No mundo real, essa expressão não possui o mesmo significado para os dois povos. Na chocante assimetria que marca a situação no Oriente Médio, o exercício do direito à segurança depende de pressupostos diversos, conforme o lado em que cada um se encontre. Se para os israelenses, cidadãos de um Estado consolidado que conta até mesmo com bombas nucleares em seu arsenal, “uma vida em paz” equivale simplesmente ao fim das hostilidades, para os palestinos, tratados como intrusos em sua própria terra, esse ideal é inseparável de outro sonho – o de uma vida com justiça. Sem justiça, não pode existir paz. Nem aqui, nem na Palestina.
Igor Fuser é jornalista e professor, doutorando em Ciência Política na USP e autor do livro Petróleo e Poder – O envolvimento militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico (Unesp, 2008).
Autor: Igor Fuser – jornalista e professor