Pouco menos de 24 horas depois do massacre de Realengo, na manhã de sexta-feira, 8 de abril, a apresentadora do programa matinal da Rede Globo, Ana Maria Braga, levava ao estúdio e colocava no ar uma das meninas sobreviventes da tragédia. Seu primeiro comentário foi sobre a aparência da garota, diferente daquela que vira no dia anterior, durante a cobertura dos crimes.
Além de produzida especialmente para o programa, a menina teve de reviver os momentos dramáticos passados em sala de aula e contar que faziam uma prova de Ciências na hora do atentado. Sem nenhuma sensibilidade, Ana Maria Braga perguntou: “Vocês acabaram a prova?” Seria cômico se não estivéssemos falando de uma tragédia sem precedentes no Brasil.
Como em casos anteriores, o da menina Isabela Nardoni e o da jovem Eloá, por exemplo, a TV transformou o que já era trágico em um show de horrores. Dessa vez, dado o número de vítimas, o espetáculo ganhou dimensões ainda maiores. Os telespectadores ficam presos a ele movidos por sentimentos ambivalentes: o medo de passar pela mesma situação e o alívio por não terem sofrido o mesmo drama. As emissoras, por sua vez, sabem como explorar essa tensão para manter os olhos do público fixos na tela.
Mas a responsabilidade não é só dos canais de TV, ávidos por segurar a audiência através do medo. É também das autoridades públicas. Em vez de exibidas como animais exóticos nesses programas, as crianças deveriam estar recebendo, naquele momento, apoio de psicólogos e assistentes sociais do Estado, protegidas do assédio de câmeras e microfones – o que vale também para seus familiares.
Ocorreu o contrário, numa violação clara do Estatuto da Criança e do Adolescente, que em seu artigo 17 garante aos menores o direito da “inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem…” E, no artigo 18, diz que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
O que pode haver de mais vexatório ou constrangedor do que uma criança, diante das câmeras e à vista de milhões de pessoas, ser forçada a recordar cenas terríveis até que as lágrimas escorram pelo seu rosto? É um tratamento cruel.
Nada contra a obrigação da mídia de informar e atender ao interesse do público. O que não é admissível é transformar a notícia num espetáculo macabro. É preciso ter claros os limites de onde acaba a informação e começa o show.
Lembro de um atentado à bomba ocorrido há alguns anos num bar da Irlanda do Norte, no qual morreram mais de 50 pessoas. Imagino, com horror, o cenário de um crime como esse, com corpos despedaçados espalhados por todos os cantos.
Acompanhei pela BBC a cobertura do acontecimento. Fiquei sabendo a localização do bar, o número de mortos e feridos, o nome da organização sobre a qual recaía a suspeita do crime, as providências tomadas pelas autoridades, enfim, tudo o que era importante na notícia. Mas não vi uma gota de sangue.
Curiosamente aqui, naquele mesmo dia, um ator de novela sofrera um assalto numa estrada próxima a São Paulo e fora baleado. Ao chegar ao local, as equipes de reportagem obviamente não encontraram a vítima, mas a marca de seu sangue no chão ficou na tela por alguns minutos.
Infelizmente, caem no vazio todos os apelos para que coberturas jornalísticas não tornem mais dramáticas situações que, por si, já são trágicas. Dez dias depois da tragédia de Realengo, as crianças voltaram à escola. A Secretaria de Educação do Rio pediu que os jornalistas as poupassem de novos constrangimentos. Afinal, era preciso retornar gradualmente à normalidade, sem câmeras, microfones e holofotes que caracterizam situações extraordinárias. Em vão. Aos jornalistas e às empresas nas quais trabalham não interessa a saúde psíquica das crianças, mas apenas os índices de audiência dos telejornais da noite e a tiragem dos jornais da manhã seguinte.
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Autor: Laurindo Lalo Leal Filho