A política externa do primeiro governo Dilma Rousseff lidou com um ambiente internacional diverso do segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda que as linhas gerais da política externa dos dois governos permanecesse similar, o impacto externo das ações do Brasil diferiu de modo significativo.
A política externa de Lula foi projetada contra os planos de fundo da guerra ao Terror e da crise econômica de 2008. Em termos normativos, o Brasil se colocou como alternativa diante desses dois processos – sem, com isso, antagonizar seus protagonistas. Na ONU, Lula defendeu uma luta global contra a fome em contraste com a invasão norte-americana do Iraque em 2003. No Haiti, embasado pelo princípio da não-indiferença, o Brasil assumiu a liderança da MINUSTAH, substituindo os EUA como agente pacificador daquele país e representante da comunidade internacional. Antes mesmo do baque de 2008, o Brasil reposicionou sua estratégia comercial como fornecedor de commodities – com preços em alta – para três grandes parceiros: União Europeia, EUA e (cada vez mais) a China.
Paralelamente, o Brasil buscou diversificar suas opções, intensificar seu investimento externo e internacionalizar suas empresas, através da cooperação Sul-Sul. Lula visitou grande número de países africanos e asiáticos. Cúpulas foram realizadas com países do Oriente Médio. O Brasil investiu na criação de instituições no esforço de engajar parceiros do Sul – a UNASUL no continente americano, o G-20 na OMC e, sobretudo, os BRICS como grupo de países emergentes mais importantes após a crise de 2008, motores da recuperação econômica global. Instituições já existentes foram mobilizadas nesse esforço – a Venezuela foi convidada para o MERCOSUL.
O crescimento econômico do fim do segundo governo Lula suscitou expectativas positivas para Dilma. O enfrentamento da crise de 2008 via crescimento dos emergentes levaria à reforma das instituições financeiras internacionais e à reabertura da Rodada Doha na OMC. Promessas do governo Obama de pôr fim ao esforço militar dos EUA no Iraque e Afeganistão abririam caminho para o desenvolvimento no plano internacional. Dilma iniciou seu mandato durante a Primavera Árabe – otimismo adicional sobre democratização e solução pacífica de conflitos no Oriente Médio.
Tal otimismo foi revertido nos anos subsequentes. Para além da Tunísia, a Primavera Árabe desaguou em nova ditadura no Egito, intervenção armada na Líbia, intervenção de Israel em Gaza e a cruzada contra o ISIS deflagrada por EUA e coalizão (membros da OTAN e aliados dos EUA no Oriente Médio) na Síria e Iraque. Crises político-econômicas na Argentina, Venezuela e Paraguai impactaram o MERCOSUL e a UNASUL. A Aliança do Pacífico se colocou como alternativa de integração econômica sul-americana. Esperanças de reformar instituições financeiras internacionais esbarraram na resistência das economias do G-8, em lento processo de recuperação (que derrubou os preços das commodities, impulsionando déficits externos nos países em desenvolvimento).
Diante desse quadro, o governo Dilma constituiu pragmática continuação do esforço inicial de Lula. Os resultados das políticas de Lula limitaram as opções disponíveis para Dilma no plano externo.
Sucessos recentes – medidas anticíclicas de combate à crise de 2008, programas de transferência de renda, de combate à pobreza e à desigualdade – elevaram o perfil internacional do Brasil. O país do futuro adiado a cada crise se tornou catalizador de transformações replicadas mundo afora. Na seara aberta pelo PIB brasileiro de 7.5% em 2010, vizinhos (como a Bolívia) acumularam êxitos econômicos. A África do Sul reduziu a pobreza e desigualdade de renda, segundo o Banco Mundial, inspirada em programas sociais brasileiros. A ONU criou um Conselho de Segurança Alimentar diretamente inspirado pelo êxito do Consea. Um brasileiro comanda a Organização Mundial do Comércio e outro, a maior operação de paz da história da ONU, na República Democrática do Congo.
Mais que manter ativa e altiva a diplomacia brasileira, um desafio do segundo governo Dilma é lidar com os efeitos de êxitos recentes. Inovações políticas bem-sucedidas tendem a ser replicadas, com menores custos. Uma vez global player, o Brasil deixa de ser “novidade”, enfrenta maior resistência.
A tentativa brasileira de rediscutir a responsabilidade de proteger durante a intervenção da OTAN na Líbia (a responsabilidade ao proteger) foi recebida com indisfarçada hostilidade. O Brasil contribuiu modestamente na crise na Síria (os BRICS mobilizaram a norma da proscrição de armas químicas para impedir nova intervenção armada dos EUA). Com receitas brasileiras, a Bolívia hoje cresce mais que o Brasil e a África do Sul reduz suas desigualdades em ritmo mais acelerado. A renegociação do gás com a Bolívia – com os países em condições bem melhores do que há 10 anos – se avizinha difícil. Frutos da política externa africana de Lula foram compartilhados com os outros BRICS, via acirrada competição de empresas emergentes internacionalizadas pós-crise.
Diante do cenário externo menos favorável, Dilma teve que diversificar suas estratégias. À desaceleração do crescimento se seguiu o reforço do papel do BNDES como catalizador do investimento externo associado à cooperação Sul-Sul. Após a reiterada relutância do G-8 em reformar o FMI e o Banco Mundial, o Brasil viabilizou a criação do Banco dos BRICS durante a Cúpula de Fortaleza, além de um fundo de contingência para o enfrentamento de crises internacionais. Afora os BRICS, Dilma utilizou uma plataforma multilateral – a ONU – para denunciar a espionagem eletrônica da NSA norte-americana. A escolha do foro impulsionou a construção de mecanismos internacionais de regulação da internet (à imagem do Marco Civil brasileiro). Um ano após a denúncia, Barack Obama aceita discutir a regulação da internet via regras mais severas possíveis. Ao repúdio à cyber-espionagem se somaram demonstrações de autonomia brasileira na Líbia, Síria, Ucrânia e Gaza. Essas posturas coerentes e firmes não reduziram o espaço do Brasil diante da outrora inconteste superpotência. No cômputo geral, aumentaram o valor de negociar com o Brasil.
O enfrentamento da crise nos governos Lula e Dilma permitiu ao Brasil crescer mais do que os EUA de Obama – o que nos aproxima de simetria inaudita nos tempos em que o Brasil era submetido aos pacotes do FMI e encolhia após cada crise mundial. Segundo a OCDE, no Brasil o desemprego pós-crise caiu para níveis historicamente baixos. A inflação se mantém estável, menor do que durante o Plano Real e bem distante dos índices de décadas passadas; a taxa SELIC segue inferior à de 2008. As reservas internacionais duplicaram desde a crise, se mantêm significativamente maiores que o endividamento externo. A produtividade do trabalho atingiu níveis recordes. O país não enfrenta gargalos energéticos de grande monta. A pobreza e a desigualdade de renda continuam em queda. O superávit primário de Dilma supera o de FHC. A taxa de câmbio permanece substancialmente menor em 2014 do que no ano eleitoral de 2002, ou ainda durante a crise de 1998-1999. Impasses relativos à desaceleração do crescimento são bem mais suaves do que os de décadas atrás.
Em relação ao contexto pré-crise, o Brasil cresceu de vulto em relação aos EUA. Estes tiveram sua importância reduzida frente ao Brasil – tanto em termos de produto interno bruto quanto de contribuição para o crescimento da economia mundial. Isso ocorreu não apenas graças à postura brasileira, mas deriva do crescimento de outros emergentes, especialmente a China. A “novidade” da China no discurso da oposição brasileira presta tributo à consolidação dos BRICS e indica: não haverá retorno ao status quo da década passada.
É nesse sentido que os EUA buscam se aproximar do Brasil em três frentes de negociação: no plano comercial, manter e ampliar o volume de negócios impactado pela crise. O comércio bilateral – reduzido em 30% após 2008 – já se reaproxima do pico histórico de 55 bilhões de dólares anuais.
No meio ambiente, o Brasil desponta como agente capaz de colocar em diálogo os grandes poluidores da atualidade – além dos EUA, a China – e o mundo em desenvolvimento “isentado” de maiores responsabilidades no Protocolo de Quioto. Em contraste com acordos bilaterais entre grandes poluidores (mantendo assimetrias frente à comunidade internacional) a atuação do Brasil se funda numa norma internacional: o princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Ademais, o Brasil associou temas de Meio Ambiente ao combate à pobreza no qual o país se notabilizou, ao realizar a conferência Rio 20 e através de iniciativas como o programa PAA África.
O zelo normativo do Brasil reitera posturas tradicionais de sua diplomacia, como o respeito pelo multilateralismo e a adesão incondicional ao princípio da integridade territorial dos estados (princípios fragilizados no bombardeio do Iraque e Síria pela coalizão anti-ISIS liderada pelos EUA).
No plano regional, Brasil e EUA possuem uma extensa agenda de interesses sobrepostos, casos do Haiti, Venezuela e Argentina. O Brasil assume, em grande medida, responsabilidades dantes associadas com uma “área de influência” estadunidense. A participação de empresas brasileiras em cadeias regionais e globais de produção cresceu, mas permanece abaixo de seu potencial.
Dificuldades correntes de parceiros estratégicos como Argentina e Venezuela, fartamente exploradas pela oposição, mostram desafios a ser enfrentados com desassombro. Não são exclusividade dos governos Dilma. Foi no governo FHC que o Brasil criou um grupo de países latino-americanos para manter Hugo Chávez no poder na Venezuela, vítima de um golpe de estado apoiado…pelos Estados Unidos. Via BNDES, FHC financiou a construção do metrô de Caracas (além de investimentos na região portuária de Mariel, em Cuba). Foi também nos governos tucanos – entusiastas de áreas de livre comércio – que a ALCA naufragou e que o MERCOSUL sofreu com as implicações da crise econômico-política na Argentina. Nossas relações com a América Latina nos lembram que política externa é uma política pública não redutível a idiossincrasias partidárias.
Nos próximos anos, o crescimento da economia brasileira dependerá menos da escolha de parceiros do que do encaminhamento dado a contradições internas – como o empoderamento da força de trabalho (não apenas em termos de renda), a primarização da pauta exportadora versus a capacitação da indústria, e as turbulências das empresas brasileiras. Ao invés de deixar os mercados exercerem o papel de juízes auto-impostos, fazer da economia pós-crise nova rota de crescimento demanda do segundo governo Rousseff um aprofundamento da qualidade da democracia.
A política externa contribui com o aprofundamento da democracia no Brasil através da articulação de esforços que traduzem a complexidade do país. À expertise do Itamaraty vieram-se somar o dinamismo da diplomacia presidencial e múltiplas ações da sociedade civil cada vez mais interessada em questões que afetam seu presente e suas perspectivas de futuro. Gerar sinergias inclusivas que beneficiem a população brasileira é o desafio mais agudo da política externa em democratização.
Dilma Rousseff foi reconduzida à Presidência. Sua reeleição não ocorreu a despeito de suas políticas. Tampouco foi ancorada em promessas de ruptura – que entram choque com as transformações do Brasil nos últimos 25 anos. Do país da hiperinflação e dos marajás, o mais desigual do mundo, para um destacado membro dos BRICS, protagonista de iniciativas de cooperação internacionais, recém-saído do Mapa da Fome da FAO. O país se tornou porto seguro para investimentos internacionais, e o investimento externo brasileiro se multiplicou. Contrariando previsões pessimistas, o Brasil se tornou um país mais rico, justo – e complexo.
O eleitorado brasileiro legitimou Dilma e a autorizou a dar continuidade a mudanças. Há ampla expectativa de que a política externa de seu segundo governo consolide esforços políticos que começam a frutificar (como a cooperação Sul-Sul). Que o enfrentamento dos desafios se faça de forma condizente com sua profundidade. À luz dos avanços o Brasil segue, sem volta, para o futuro.
(*) Professor de Relações Internacionais na PUC-Rio – publicado no site Carta Maior”
Autor: Carlos Frederico Pereira da Silva Gama (*)