Um mergulho na mortal escalada dos agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro
“Altamente persistente no meio ambiente”, “provoca danos aos órgãos, por exposição repetida ou prolongada”, “em contaminações mais graves, pode causar contrações musculares involuntárias, convulsões, podendo até levar a ocorrência de coma”. Por mais que pareçam fatalistas, as descrições anteriores foram retiradas das Fichas de Informação de Segurança para Produtos Químicos (FISPQ) de alguns dos 211 agrotóxicos liberados, somente este ano, pelo Ministério da Agricultura – um número recorde entre os meses de janeiro e junho desde 2005.
Sem freio, a liberação acende o debate dos impactos dos venenos no consumidor final, mas circunda, principalmente, a segurança dos trabalhadores rurais, da agricultura familiar e da intoxicação da fauna e flora. Como obstáculo, encontra no poderio do agronegócio limites para medidas mais seguras de produção no campo.
Não é por acaso que os agrotóxicos ocupam papel no mecanismo bilionário do agronegócio, que foi responsável por 21,1% do PIB brasileiro em 2018, de acordo com o Cepea-USP (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada). A causa é defendida pela bancada ruralista, a maior do Congresso – ex-casa da atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina -, e possui uma série de benefícios fiscais direcionados à questão do uso de agrotóxicos.
O Confaz (Conselho Nacional de Polícia Fazendária), por exemplo, reduz em 60% a base do cálculo de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e isenta as substâncias de pagarem o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Em 2018, cerca de 2 bilhões de reais não foram arrecadados pelo caixa do governo por conta das gentilezas prestadas aos ativos agrícolas.
As práticas não são condenadas apenas por organizações ambientalistas, como pode se supor. Raquel Dodge, procuradora-geral da República, argumentou em parecer de uma ação que tramita no STF sobre a causa que as isenções contrariam direitos constitucionais ao meio ambiente, à proteção do trabalhador e à saúde coletiva, além de incentivarem o uso dos produtos.
As preocupações apresentadas não impediram que derivados de clorpirifós, glifosato, 2,4-D e fepronil, por exemplo, tivessem sua autorização assinada pelos mecanismos reguladores do Ministério da Agricultura. Com nomes estranhos à maioria da opinião pública, o primeiro aqui citado é estudado por se relacionar à diminuição do QI de crianças na Europa e também está relacionado ao aumento de depressão em trabalhadores que manuseiam o produto devido a sua composição. O fepronil é um dos mais agressivos a abelhas, que vêm morrendo aos milhões no País – gerando prejuízo, inclusive, aos apicultores.
A maioria das substâncias autorizadas este ano não é nova, mas sim um ‘genérico’ chamado de produto técnico equivalente, que não são avaliados novamente em relação à toxicidade. “O que os genéricos têm de demonstrar é que são quimicamente ‘iguais’ ao produto de referência”, explica Flávio Zambrone, presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia.
Para Larissa Bombardi, pesquisadora em geografia humana da Universidade de São Paulo (USP), é justamente o maior prazo de avaliação dos compostos que causa a discrepância entre o que é utilizado no Brasil e o que é aceito no exterior – especialmente na União Europeia, mais rígida em relação aos produtos. “Lá, há uma periodicidade do registro, que se extingue em 5 ou 10 anos. Aqui, ele não caduca”, complementa.
Bombardi é responsável por elaborar o Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, estudo publicado em 2017 que identifica os locais de maior uso e seus impactos regionais no território brasileiro. Para ela, não há dúvidas de quem é o principal afetado pela expansão do uso dos aditivos no País: o trabalhador e morador das áreas rurais.
Depressão e suicídio no campo
A intoxicação do trabalhador é uma realidade latente que segue o passo da comercialização dos ativos químicos. É o que mostram os números do Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, elaborado pelo Ministério da Saúde em 2018.
Bombardi ressalta que o tipo mais comum de intoxicação é a aguda, que inclui pessoas que inalam, ingerem ou têm contato físico com as substâncias em níveis perigosos. Destaca, também, as doenças crônicas, como câncer e desregulações endócrinas.
É o número de tentativas de suicídio entre os trabalhadores rurais e camponeses que assusta. “De 2007 a 2014, 40% dos casos de intoxicação notificados no Ministério da Saúde (MS) foram por tentativa de suicídio com gestão de agrotóxico”, afirmou a pesquisadora. “Há um grande número porque eles ficam expostos à substâncias, especialmente aos organofosforados, que causam no mínimo depressão”.
No campo, além do risco à vida dos trabalhadores, os aditivos tornam viável a plantação das commodities de um lado e fragilizam a composição biológica e química das plantas do outro. A tropicalidade do Brasil exige mais veneno para conter os insetos e pragas. “A gente tem umidade e calor juntos, maior biomassa e biodiversidade. Quando eu homogenizo uma paisagem, vou na contramão da maneira como se dá o arranjo natural nos trópicos, e vou ter uma infinidade de insetos atacando essa agricultura”, analisa Bombardi.
Abelhas
Enquanto a diversidade das pragas aumenta, o número de abelhas, essenciais polinizadoras e reguladoras da biodiversidade, diminui em ritmo que deve atingir os bilhões. Somente nos três primeiros meses de 2019, foi computada a morte de meio bilhão de abelhas.
Eny diz que o processo de intoxicação das abelhas pode ocorrer por três vias: quando elas acumulam tóxicos no corpo – oriundos de pulverização em solo ou aérea -, quando elas caminham sob as plantas medicalizadas ou quando ingerem pólen e néctar contaminado com pesticidas. “O efeito do pesticida pode ser letal, com morte em questão de horas, ou sub letal, com efeitos de longo prazo sobre a mobilidade, memória cognitiva, aprendizado, desenvolvimento larval, fertilidade da rainha, má formação das abelhas nascentes, entre outros efeitos”, completa a pesquisadora.
O serviço ecossistêmico dos animais polinizadores à agricultura brasileira contribuiu com cerca de 43 bilhões de reais em 2018, segundo a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e pela Rede Brasileira de Interações Planta-Polinizador (Rebipp). A estimativa se refere ao valores que seriam gastos pelos agricultores caso os polinizadores não contribuíssem para a produção de alimentos.
“Atualmente, devido aos estudos que provam a relação destes produtos e a morte de abelhas, os mesmos estão sendo banidos de alguns países da Comunidade Europeia, como o fipronil”, analisou a professora.
Negócios à parte?
O impasse entre o uso dos agrotóxicos para o aumento da produtividade no campo e os inúmeros efeitos negativos dos produtos na vida humana e ambiental, para Larissa Bombardi, poderia ser resolvido com um modelo de transição agroecológica.
“De forma mais indireta, a gente não mexeu na questão da concentração fundiária no Brasil. A gente tem uma área da Alemanha só em soja, e aumentamos a área de cana, eucalipto e soja e diminuímos as áreas de arroz, feijão e mandioca”, diz Bombardi. “Esse é um avanço que implica na área de produção de alimentos no Brasil. Uma parte da produção vira biodiesel, e a outra é vendida no mercado internacional. Viraram uma mercadoria estranha à alimentação do brasileiro”, analisa.
“Num primeiro passo, a gente podia não permitir no Brasil o que não é permitido na União Europeia, assim como práticas proibidas fora – como a pulverização aérea”, acrescenta.
Flávio Zambrone discorda. Para ele, o uso de diferentes ativos agrícolas vem com as “diferentes necessidades agronômicas”, o que varia o portfólio de químicos. O especialista acredita que a questão central é o treinamento dos trabalhadores para o melhor manuseio dos venenos.
A percepção da importância de se pensar os pesticidas, para Eny Vieira, já é um primeiro passo. A atenção dada à morte das abelhas não é a mesma para o comprometimento dos sistemas aquáticos e florestais causados pelos venenos, mas, para ela, “há um reconhecimento intrínseco no ser humano de respeito, valor e reconhecimento da dependência que temos destes pequenos seres para nossa qualidade de vida”.
“Acredito que já estamos bastante atrasados para aplicar o princípio da precaução. Se incertezas ainda pairam sobre um elemento que pode ameaçar a vida e a sociedade humana, o mais sensato é caminhar com cautela e segurança. Sempre existem outros caminhos menos arriscados”, completa.
Fonte: Carta Capital | Escrito por: Giovanna Galvani | Foto: Reprodução | Gráfico: SIDRA/IBGE e Agrofit/MAPA