A população indígena brasileira tem um poder heróico de resistência e transformação. Atualmente, após 519 anos de intensiva política genocida contra os povos originários, temos o orgulho de dizer que a população indígena vem crescendo numericamente, ao passo que o Estado reconhece a existência de povos indígenas falando mais de 180 línguas.
É óbvio que a violência praticada pelos colonizadores foi trágica. Quando os colonizadores invadiram nossas terras, éramos donos absolutos e durante um longo período da fase colonial fomos a maioria da população local. O processo “civilizatório” provocou o desaparecimento de centenas de povos e línguas indígenas.
A violência “civilizadora” da cultura ocidental-cristã utilizou todos os artifícios discursivos e práticos contra os povos indígenas. Buscou-se provar (cientificamente) a sua inferioridade biológica, cultural, moral e espiritual. Comprovada a suposta inferioridade, estavam abertas todas as portas para a desintegração da cultura originária, seja através da religião, da escola ou dos mecanismos da força bélica.
A Igreja, com sua prática de catequese, construiu a estrutura sobre a qual o Estado português – e mais tarde o Estado brasileiro – consolidou o domínio sobre os povos indígenas. Proibiram o uso das línguas e dos rituais originários, deslocaram os povos indígenas de suas terras, arbitrariamente juntaram povos de culturas diferentes, assassinaram as lideranças e os povos guerreiros, enfim, pegaram as mulheres indígenas à laço para estuprá-las e assassiná-las (e ainda tem muito não-índio que se orgulha em dizer que “minha vó foi pega a laço”).
Em 1759 foi criado o cargo de “Diretor dos Índios”, era o prenuncio da discriminação e da tutela étnica, que mais tarde se transformaria no Serviço de Proteção do Índio (SPI) e na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), instituições que mantiveram os povos indígenas sobreviventes sob a vigilância do Estado. Ou seja, os organismos estatais que tratam da questão indígena têm o dever de evitar o ressurgimento desses povos enquanto expressão política autônoma, afinal, o projeto da nação homogênea não pode demonstrar fraqueza diante daqueles que outrora eram os donos da terra.
A falácia da nação homegênea
A falência do projeto de homogeneização da nação brasileira é nítida, e junto com ela, fracassou também a tentativa de extermínio dos povos indígenas. Por meio das nossas organizações, em aliança com os setores democráticos do país, conquistamos muitos direitos antes negados aos nossos povos. A constituição federal de 1988 abriu a possibilidade de ampliarmos as nossas conquistas em todos os campos, apesar das dificuldades de efetivação das leis.
Mais recentemente, a lei 11.645/08 trouxe mais um elemento de conquista para os povos indígenas, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da “história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras”, tanto nas instituições públicas quanto nas particulares. É a oportunidade de promovermos uma revisão na história oficial, colando sob suspeita a única versão autorizada da história nacional. Os povos indígenas têm muitas histórias para contar, histórias que foram ocultadas ou esquecidas pelos vencedores.
Os povos indígenas e a crise dos valores modernos
Há um outro aspecto que precisa ser tratado quando a discussão é a temática indígena. A humanidade reconhece atualmente a crise da opção civilizatória escolhida no planeta. O aquecimento global e a degradação das relações sócio-econômicas não deixam dúvida de que algo está errado e que é preciso repensar e refazer tais relações.
Observando a cultura indígena brasileira – em especial os povos da Amazônia – é possível um diálogo que contribua com a construção de um outro mundo (o “outro mundo possível” imaginado pelos movimentos sociais). Os povos da Amazônia convivem numa relação equilibrada com o meio – tanto com os seus semelhantes quanto com os ecossistemas, sendo que, em linguagem e rituais diferentes, todos os povos indígenas vêem esse equilíbrio com sagrado (na acepção cristã da palavra). Portanto, os indígenas (e para mim, em especial) a degradação das relações sócio-ambientais é uma condenação de morte real, pois é a destruição das tradições, das coisas sagradas, enfim, é a destruição da condição fundamental da sobrevivência na terra.
Sobre a Amazônia e as terras indígenas, as vozes conservadoras continuaram questionando o suposto excesso de terra nas mãos dos povos indígenas. Ora, os indígenas historicamente mantiveram a preservação daquela região, e se o povo brasileiro permitir, continuaremos preservando a Amazônia para os brasileiros, mas se o Estado preferir entregá-la aos latifundiários, madeireiras, mineradoras, agronegócio ou às ONG’s, que faça, mas o resultado dessa opção é óbvia. Portanto, a presença dos povos indígenas na Amazônia é garantia do equilíbrio sócio-ambiental da região, e todo discurso contrário provêm das vozes racistas e capitalistas selvagens.
Os povos indígenas estão dispostos a dialogar, mas o diálogo pressupõe uma relação de respeito, de ouvir e falar, de participação e democratização dos bens materiais e culturais. Um diálogo bem construído pode resultar em ensinamentos para a construção de um mundo equilibrado, livre das ações devastadoras e do egoísmo que corrompe a humanidade.
O dia 19 de abril foi escolhido como o Dia do Índio pelos participantes do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano que aconteceu no México em 1940. Três anos depois, a data foi oficializada no Brasil.
Autor: Edson Brito é indígena da etnia Kayapó, doutorando do programa “Educação: história, política e sociedade”, da PUC-SP