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Acordo entre empresa e sindicato permitiria as condições degradantes; juíza fala em ‘trabalho análogo à escravidão’

Os relatos de exaustão das pessoas submetidas à escala 6×1 sensibilizaram uma grande parcela dos trabalhadores brasileiros. Um dia de folga para seis trabalhados – regime que parecia inquestionável e “normal” até pouco tempo atrás –, agora, tomou o lugar do absurdo, do inaceitável. A repercussão nacional deu voz a trabalhadores que relatam condições e escalas ainda mais degradantes e alegam existir manipulação de banco de horas, transgressão de direitos e cumplicidade dos sindicatos com a patronal. É o caso dos trabalhadores da Companhia Zaffari, uma empresa tradicional do Rio Grande do Sul e um dos maiores monopólios do varejo de alimentos brasileiro.

Os trabalhadores relatam, além de até dez dias trabalhados sem folga, horas extras obrigatórias em todos os finais de semana, sem compensação salarial. O salário líquido médio de um funcionário da rede é de R$1.200. Com 12.500 funcionários, a Companhia Zaffari é a 12ª maior rede de hipermercados do Brasil, cujo faturamento, em 2023, foi de R$ 7,6 bilhões.

“Em outros empregos, eu sempre trabalhei cinco por dois ou seis por um. Mas nunca assim. Pelo menos, eu conseguia falar com o chefe pra conseguir uma folga numa sexta, num sábado. Mas, aqui não tem esse diálogo. Sábado eles nunca dão folga. E a gente chega a trabalhar três domingos seguidos”. O sentimento é de desvalorização, desamparo e muita indignação de ver a vida passando dentro de um hipermercado, para ganhar um salário líquido abaixo do mínimo nacional. “Ninguém aguenta muito tempo”, constata.

Estes relatos são comuns aos trabalhadores de diferentes unidades da Companhia Zaffari. Apesar de contrariar diretamente a legislação trabalhista, que prevê descanso remunerado aos domingos no intervalo máximo de três semanas (ou seja, a cada dois domingos trabalhados, o próximo deve ser folgado) e veta a possibilidade de estender a jornada para além de seis dias, segundo os funcionários ouvidos pela reportagem, a empresa tem na violação destes direitos a regra do seu regime de trabalho.

Uma operadora de caixa que pediu para não ser identificada denunciou a mesma situação. “Tem gente que trabalha dez dias só pra ter uma folga. No domingo, a gente entra super cedo para sair super tarde. Eu acho isso um absurdo”. A funcionária começou a trabalhar na empresa enquanto ainda estava na escola. “Eu não tenho mais vida. Eu chegava com sono na escola e não conseguia prestar atenção. Eu estudava de manhã e trabalhava de tarde. Eu estava sempre cansada e eles brigavam comigo por estar cansada”. Por fim, revelou ter colegas que saíram do mercado com ansiedade e depressão. “A gente ganha pouco e ainda tem que gastar dinheiro com terapia, porque não dá pra aguentar”.

Outra regra da empresa, de acordo com as pessoas ouvidas pela reportagem, são os “dias de dobra”. Nas sextas, sábados e domingos as horas extras seriam obrigatórias. Uma outra funcionária afirmou que, durante sua contratação, foi dito que as extras seriam opcionais, mas “depois, quando já está trabalhando, eles falam que é obrigatório”.

Sua colega complementa: “eles nos pressionam para trabalhar a mais”. Nesses dias, caso o funcionário se recuse a trabalhar as horas extras, receberá desconto no banco de horas; caso trabalhe, as horas não são computadas como crédito. “E ainda nos dão esporro, que é pra gente não querer faltar. Tipo assim, tu trabalha ou trabalha”, explicou.

Ainda sobre as horas extras, que são prometidas como uma forma de aumentar o salário, a empresa utiliza do banco de horas para fazer a compensação. “Tu pode trabalhar e ficar com 20 horas sobrando e eles não vão te pagar. Mas se tu ficar com 2 horas faltando eles vão te cobrar”, explicou outro funcionário. “Antes de fechar a folha, eles começam a te mandar embora mais cedo. Fiquei três dias indo embora mais cedo pra não ganhar as horas extras”.

Na prática, alguns funcionários, por vários dias consecutivos, chegam a trabalhar 10h seguidas só para ter o direito a uma folga. “Teve um dia que eu coloquei um atestado. Fiquei uma semana trabalhando direto, mas tive muito que ir ao médico. Aí, mesmo com atestado, no meu ponto tava como ‘falta injustificada’. Nesse mês, tive um valor alto descontado do salário”, denunciou.

Para receber o auxílio alimentação, os trabalhadores seriam obrigados a trabalhar nos domingos e feriados: o valor extra desses dias é depositado em um cartão Zaffari. “Se trabalhou domingo e feriado, recebe o alimentação da semana. Se não trabalhar nesses dias, não recebe”, declarou um empacotador. Uma outra operadora de caixa explica o sistema: “São dois cartões, o salário e o alimentação. São cartões do Zaffari. O cartão salário dá pra sacar em qualquer caixa eletrônico. Mas o de alimentação só dá pra sacar nos caixas do Zaffari. Daí, eles depositam nesse cartão o valor dos domingos e feriados. Mas são poucos lugares que aceitam esse cartão. Então, na maioria das vezes, tu só usa ele no Zaffari mesmo. Tu está saindo tarde do trabalho e quer comprar alguma coisa, então acaba comprando aqui, já que tu precisa ir pra casa”. De acordo com os relatos, sem tempo por causa de uma jornada de trabalho exaustiva, o próprio Zaffari acaba por ficar com uma grande fatia do valor das horas extras pagas como auxílio alimentação, valor que não seria registrado na folha de pagamento.

Recentemente, a Companhia Zaffari instituiu um programa de distribuição de cestas básicas para seus funcionários. Segundo um deles, essa medida seria para compensar os baixos salários e a insatisfação crescente, que leva a alta rotatividade na empresa. Porém, uma operadora de caixa denunciou as regras do benefício. “Eles falaram que a gente ia ganhar a cesta básica, só não pode faltar, nem botar atestado. Aí, eu fiquei ruim por causa da comida que eles nos servem no refeitório. Eu me humilhei pra ir embora, porque passei o dia todo com dor no estômago. Era um domingo de dobra e eles não queriam me liberar”. A operadora de caixa contou que quando a situação chegou ao limite, passou mal e decidiu ir ao médico. “Então, eles falaram: ‘tu perdeu a cesta básica’. Eles estão tirando nosso direito de ficar doente. É muita humilhação não poder ficar doente para ganhar uma cesta básica”, desabafou.

Outra operadora de caixa denunciou casos de assédio contra funcionárias mulheres, vindo tanto de clientes, quanto de colegas de trabalho: “Tem um fiscal na minha loja que assediou uma menina. Passou a mão nela durante meses, até que ela decidiu falar com o gerente geral. Ele disse que tomaria providências. Aí, no outro dia, ela foi demitida, mas o fiscal continua lá!”. Também dá um relato próprio: “eu mesma já fui assediada na loja por um cliente, falei com o gerente geral, mostrei quem era a pessoa, mas ele fingiu que nem viu. Disse que ia tomar providência e não fez nada”.

A Companhia Zaffari foi contatada para comentar sobre os relatos de seus funcionários e não respondeu até a publicação desta reportagem e o espaço segue aberto.

Apontamentos semelhantes são facilmente encontrados nos relatos virtuais feitos por atuais e ex-funcionários do Zaffari no site “Indeed”, onde se fazem avaliações sobre a experiência em um emprego:

Operador de loja (Ex-Funcionário) – Rio Grande do Sul – 30 de outubro de 2024

“Experiência ruim. Trabalho escravo. E remuneração miséria. O engraçado que o ministério de trabalho não faz um controle.”

Operador de caixa (Ex-Funcionário) – Novo Hamburgo, RS – 18 de maio de 2024

“Vou resumir, você não tem mais vida. Salário baixo, muito trabalho, outros colegas sendo beneficiados por serem puxa, muita hora extra (principalmente final de semana pois você entra de manhã e só sai de noite) enfim, não recomendo. Passei dois anos nesse lugar”

Vigia Patrimonial (Ex-Funcionário) – Passo Fundo, RS – 8 de março de 2024

“A empresa fez um acordo com o MPT, que graças a Deus… A justiça anula… Trabalhar por mais de seis dias corridos, isso é escravidão!”

Um acordo entre o Zaffari e o Sindec-POA permitiria as condições degradantes

De acordo com Valdete Souto Severo, doutora em direito do trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e juíza do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, a combinação de violações de direitos como a jornada de 10 dias (ou mais), trabalho em três domingos consecutivos, condicionamento do auxílio-alimentação ao consumo interno, restrição e constrangimento ao adoecimento dos funcionários, em tese, pode vir a ser enquadrado como trabalho análogo à escravidão.

“Isso é exatamente o que se considera trabalho análogo à escravidão, se usar o texto do artigo 149 do Código Penal, que fala sobre a condição degradante de trabalho e jornada extensa”. A combinação destas violações tem dois fatores principais: “é uma condição degradante porque impede que a pessoa tenha uma ‘vida de relações’, ou seja, tenha tempo pra estudar, se divertir, estar com a família. Outro fator é a extensão da jornada, que não são só as dez horas por dia, mas também a quantidade de dias na semana, porque, sobre isso, a Constituição é clara ao dizer que deve haver um descanso semanal, ou seja, não pode passar de 6 dias de trabalho consecutivo”.

Ainda assim, parte destas condições consideradas degradantes foram normatizadas e estabelecidas no último Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) entre a empresa e o Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre (Sindec-Poa), entidade que deveria atuar em defesa dos trabalhadores. Na trigésima primeira cláusula do acordo, que fala sobre o repouso semanal remunerado no domingo, em evidente oposição à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), diz o seguinte:

“Estando as empresas autorizadas a trabalharem com a utilização de empregados em domingos, ajustam as partes que, independentemente do gênero, a cada quatro semanas o repouso semanal remunerado deverá coincidir com o domingo, ou seja, após três domingos trabalhados o outro será necessariamente de repouso, hipótese em que a concessão do repouso semanal remunerado previsto no art. 7º, XV, da CF poderá ocorrer antes ou após o sétimo e até o décimo dia consecutivo de trabalho, não importando no seu pagamento em dobro desde que garantido o repouso remunerado em um único dia da semana iniciada na segunda-feira e finalizada no domingo.”

Ainda que a Reforma Trabalhista de 2017 tenha instituído a prevalência do acordo coletivo sobre o que está definido na lei, o que colocou em xeque diversos direitos trabalhistas, ela ainda veda a possibilidade de alteração, por meio de ACT, de diversos direitos mínimos, como o repouso semanal remunerado após o sexto dia consecutivo de trabalho. Não bastasse esta definição, o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS), em fevereiro de 2024, noticiou o resultado de uma ação em que pedia a nulidade de uma cláusula idêntica à citada acima, porém, que constava noutro acordo, no caso, entre o Sindec-Poa e o Comercial Zaffari. Na ação, argumenta o MPT-RS:

“Ao prever a possibilidade de concessão do repouso semanal remunerado após o sétimo dia consecutivo de trabalho, não importando no seu pagamento em dobro, o caput da Cláusula Trigésima da norma clausulada afronta duplamente a ordem jurídica e extrapola os limites da autonomia coletiva”

Os nomes parecidos confundem, mas são empresas distintas. Enquanto a Companhia Zaffari é o maior monopólio de hipermercados e shoppings gaúcho, o Comercial Zaffari pertence a um primo de segundo grau dos gestores do Grupo Zaffari, mas que também figura entre as principais empresas do setor, ocupando o segundo lugar no ranking da Associação Gaúcha de Supermercados (AGAS).

Tanto a Companhia Zaffari, quanto o Sindec-Poa insistiram em manter a mesma cláusula julgada inconstitucional nos termos da vigente decisão tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho há 14 anos atrás, onde se afirma categoricamente que “viola o art. 7º, XV, da Constituição Federal a concessão de repouso semanal remunerado após o sétimo dia consecutivo de trabalho”, tese que embasou o já citado processo perpetrado pelo MPT-RS.

Este novo acordo com a Companhia Zaffari foi protocolado exatamente 5 dias após a divulgação do resultado do processo do MPT, o que poderia indicar que a decisão fora observada e, mesmo assim, ignorada pelo sindicato, o que também poderia sugerir intenção em driblar as determinações da justiça, por meio de acordos específicos entre a entidade e a empresa em particular.

Recentemente, com o avanço da PEC pelo fim da escala 6×1 e a inevitabilidade deste debate na esfera pública, o Sindec-Poa se pronunciou sobre o tema por meio de um texto de assinado por Nilton Neco, atual presidente do sindicato e membro da direção do Partido Solidariedade:“A luta pelo direito a uma jornada de trabalho digna é uma luta antiga e uma pauta que o Sindec-POA sempre fez questão de incluir nas convenções coletivas. Ao longo da nossa história, buscamos incessantemente condições que assegurem não só um descanso adequado aos trabalhadores, mas a valorização da sua qualidade de vida.”

Questionado se tem ciência das condições degradantes de trabalho dos funcionários da Companhia Zaffari e o uso da escala 10 por 1, o presidente do Sindec-Poa respondeu que não e garantiu que vai “enviar uma equipe para fazer uma vistoria em toda a rede [Zaffari]”. Em relação ao Acordo Coletivo, no primeiro momento, negou que exista um acordo direto com o Zaffari, dado que a empresa deve se submeter ao acordo geral feito com todo o setor de varejo de alimentos. Confrontado com o documento do acordo específico, argumentou que sua vigência teria expirado, informação que contrasta com a do Ministério do Trabalho, onde consta sua vigência até o dia 31 de dezembro de 2024.

Então, a resposta do presidente mudou. Se antes alegou não saber que os funcionários estavam submetidos a esta escala, depois, defendeu o acordo: “Mas está dentro da lei, viu? A escala 10 por 1”. Contra a decisão do TST e a obtenção de nulidade noticiada pelo MPT, argumentou: “Não saiu decisão no processo do MPT. Eles entraram e nós fizemos acordo com eles lá. Não saiu decisão ainda”.

A Assessoria de Comunicação do MPT, por outro lado, confirma que houve decisão no processo que anulou a cláusula do acordo com o Comercial Zaffari, mas que ainda há um processo em aberto contra a Companhia Zaffari. Sobre a posição do sindicato a respeito desta cláusula, respondeu que a entidade deve respeitar o acordo.

“A relação do Sindec com o Zaffari é boa. É uma empresa que tem respeito pela gente”, declarou. “Uma negociação coletiva é uma troca. As partes têm que se acertar. Então, tu perde numa cláusula e tenta melhorar outras”. Em troca de trabalhar 10 dias seguidos, a direção do sindicato argumenta que garantiu a remuneração extra de R$48 (para operadores) e R$36,80 (para empacotadores) nos domingos e feriados trabalhados. Este dinheiro, no entanto, como já dito, é depositado no Cartão Zaffari como auxílio-alimentação. Sob o mesmo argumento, defendeu a cláusula que permite o trabalho em três domingos seguidos. “Quem trabalhar três domingos tem folga adicional. O trabalhador tem mais folga por trabalhar três domingos”.

Um fio de esperança

Em Porto Alegre, o Movimento pelo Fim da Escala 6×1 realizou um protesto com a participação estimada de 3 mil pessoas no feriado da Proclamação da República, no dia 15 de novembro. No dia 30, foi realizada uma assembleia com a participação de diversos partidos políticos, movimentos sociais, centrais sindicais e sindicatos, onde se convocou uma nova manifestação.

Funcionários relatam condições degradantes de trabalho

“No começo, quando comecei no setor de hortifruti, eles puxaram o dez por um. Passou dois, três meses e ficou mais seguido. Às vezes é nove, às vezes é oito, às vezes é dez. Mas quando a gente é contratado eles falam que é seis por um”, relatou o funcionário Paulo, de 25 anos, que está na empresa desde setembro de 2023.

 

Fonte: Brasil de Fato, 05 de dezembro de 2024

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