Evita Perón foi a protagonista central de um processo político, encabeçado por Juan Domingo Perón, que resultou em profundas mudanças sociais na Argentina. Evita foi fundamental para construir o maior Estado de bem estar social da América Latina de seu tempo. A história da injustiça na América Latina, apesar de tudo, permanece. E por isso, Evita Perón continua sendo, no imaginário de um país, uma mulher permanente.
Em 1952, o 26 de julho caiu num sábado. Ela tinha 33 anos e pesava minguados 38 quilos. Já não sentia as dores que açoitaram seu corpo nos meses anteriores.
Era um sábado chuvoso e frio, como costumam ser os sábados de julho em Buenos Aires. Às oito e vinte e cinco da noite da noite, o câncer no útero, voraz, consumiu de vez o que restou daquele fiapo de vida. E levou embora Eva Maria Duarte de Perón.
Então, surgiu o ícone. Se até ali ela havia sido uma mulher de aparência frágil, gênio firme e decidido, poderosa e popular como ninguém, ao partir se tornou a Evita dos argentinos, passou a ser uma imagem permanente.
Não sofreu o desgaste que teria sofrido se continuasse viva. Esse, talvez, o maior paralelo entre ela e outro argentino permanente, Ernesto Che Guevara: morreram jovens, queimados em seu próprio fogo, no auge de suas lutas. E ficaram para sempre.
Evita morreu do mesmo jeito que continua: odiada por uma minoria iracunda, amada por uma maioria que tem a mais sólida e profunda convicção de que existe uma história antes de sua aparição e outra depois. Seu exemplo e sua luta continuam no imaginário coletivo. Ou seja: a crença de que este país é melhor do que era antes dela e do que seria sem ela, porque ela viveu e agiu. E que se sua luta for retomada, este país será mais justo, mais solidário, mais livre. Mais igualitário.
Nos anos 70, a Juventude Peronista, ala esquerda do sempre tão flexível peronismo de mil vertentes, gritava nas ruas: ‘Se Evita viviera/seria Montonera’. Evita não viveu até lá. Não há como saber se efetivamente seria da guerrilha dos Montoneros, se enfrentaria Perón. Mas não é nenhum absurdo calcular, a partir de sua trajetória pessoal, de sua ação política, que ela jamais se alinharia com a direita nefasta desse amálgama chamado peronismo, um movimento de mil faces que continua dominando a política argentina até hoje.
Ela foi uma figura de determinada época da história latino-americana – a que vai do fim da II Guerra até o final dos anos 70. Partiu antes, mas integra, como pouquíssima gente, o mosaico que define aquela etapa da história contemporânea de todos nós. Poucas, pouquíssimas daquelas figuras sobreviveram como ela.
E, afinal, qual foi sua obra, qual o seu legado? A obsessão por transformar. Por mudar a realidade. Tornar possível o impossível.
Evita Perón foi a protagonista central de um processo político, encabeçado por seu marido, Juan Domingo Perón, que resultou em profundas mudanças sociais na Argentina. Mas participou com digital própria, singular, de ação.
Em 1974, quando Perón, enredado em suas próprias contradições e sufocado pela ala direitista de seu movimento, rompeu com a Juventude Peronista, ouvimos todos, na Plaza de Mayo, um só grito: ‘Evita, Evita/ Perón te necesita’. Porque foi através de sua atuação, mais de duas décadas antes, que o peronismo passou a ter uma elevada e consistente dose de processo revolucionário.
Perón seria Perón sem Evita, é verdade. Mas, com ela, abriu portas e janelas para que os argentinos humilhados e silenciados vissem um outro horizonte.
O legado de Eva Perón foi entender que, para resgatar os humilhados da pobreza, é preciso não perder tempo em minúcias. Deve haver, claro, um projeto nacional. Mas isso não impede uma atuação direta, urgente. E simples.
Evita distribuiu milhares de máquinas de costura às mulheres pobres, que passaram a contribuir para o orçamento doméstico. Abriu em grande escala linhas de financiamento para a moradia popular. Implantou escolas públicas em turno completo, assegurando alimentação e assistência médica a centenas de milhares de crianças de famílias pobres. Nos hospitais públicos, ocupou o espaço antes controlado pela Igreja Católica: em vez de freiras catequistas, entregou os cuidados dos internados a enfermeiras. Mandou erguer novos hospitais, equipados com tecnologia de ponta. Fez construir colônias de férias para operários em cidades que eram redutos exclusivos das elites.
Estabeleceu pensões para hospedar estudantes, expropriou casarões elegantes para transformá-los em abrigos para mães solteiras, onde aprendiam algum ofício. Prestou atenção especial às crianças. Fortaleceu o diálogo entre governo, sindicatos e obras sociais, criando benefícios trabalhistas impensáveis na época. Sua ação foi fundamental no estabelecimento do direito de voto às mulheres. Fez tudo isso sem afetar a economia. Ao contrário: suas ações contribuíram para fortalecê-la, e para consolidar o Estado.
Sabia de seu poder, e o exercia em escala máxima. Não admitia que chamassem seu trabalho de assistencialismo beneficente: dizia que eram direitos de todos, e não dos privilegiados, o que oferecia a todos, para fúria dos privilegiados.
Passado o tempo, tudo isso pode parecer panaceias que não tocaram o fundo do problema social argentino. Mas, na época em que Evita fez o que fez, eram conquistas sequer sonhadas pelos humilhados e marginalizados condenados à miséria eterna. Criou e implantou políticas revolucionárias.
Por isso foi e ainda é tão odiada, tão desprezada pelas elites e pelos bem-pensantes, que não conseguem ver em sua trajetória nada além de um populismo deslavado. Pelos que não admitem que os trabalhadores usufruam parte de benefícios que consideram privilégios de classe, determinados por alguma ordem divina. Seu empenho em distribuir riqueza era e é algo inadmissível.
Quis um país justo, solidário, livre. Que não excluísse ninguém. Que abrisse espaço para todos. Hoje, é o símbolo da luta por oferecer proteção aos desprotegidos.
Quando os militares derrubaram Perón, em 1955, fazia três anos que ela tinha morrido. A sanha contra sua obra foi gritante: os tanques arrasaram a Cidade da Criança (que, ironicamente, e como comprovam documentos, serviu de inspiração para que Walt Disney criasse a Disneyland), destruíram o que havia naquele que seria o maior hospital infantil da América Latina (equipamentos médicos, camas, salas de cirurgia), e como mostra final de seu ódio, de seu temor, sumiram com seu cadáver.
Não adiantou nada. Da mulher que teve atuação política durante oito escassos anos, sobrevive a imagem de uma revolucionária. Sobrevive uma presença permanente na memória dos argentinos, e que o tempo não fez mais do que consolidar.
Evita foi fundamental para construir o maior Estado de bem estar social da América Latina de seu tempo. Um projeto que morreu com ela, e que só décadas depois foi retomado.
A história da injustiça na América Latina, apesar de tudo, permanece. E por isso, Evita Perón continua sendo, no imaginário de um país, uma mulher permanente.
Por Eric Nepomuceno para Carta Maior
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