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Por  Oswaldo Miqueluzzi.

Vivemos em uma sociedade fragmentada, “carente de pontos de referência” e sem “bandeiras coletivas que lhe deem uniformidade de ação e de pensamento (os velhos valores da pátria, do sindicalismo, da religião, da família, da comunidade etc. estão se esgarçando), salvo o consumismo (que não é agregador, nem universal, ou seja, é elitista)”.

O que prevalece é o individualismo, o anonimato, o debilitamento das relações familiares e matrimoniais, o consumismo, o isolamento social e local, uma grande mobilidade geográfica etc.

Há “um cenário negativamente globalizado, de crenças enfraquecidas, de posições líquidas e de um intenso desamparo econômico-social, em que paira uma profusão de medos”.

Sentindo-se impotente e desnorteada, a sociedade encontra “uma voz uniformizadora, que se exprime por meio da espetacularização da política e da justiça (oficial ou midiática), conferindo à multidão uma identidade, um consenso”.

Após “criado o clima de insatisfação, de intranquilidade e de incerteza”, o governo e o legislador afirmam não restar outro recurso “senão editar novas leis penais, com rigor sempre incrementado”.

No Brasil e, praticamente, em todo o mundo ocidental, especialmente nas três últimas décadas, adotaram-se “punições duras (‘polícia de mão dura’), leis penais mais severas e desproporcionais, criação artificial de novos crimes, endurecimento injusto da execução penal, massacre de presos, incluindo-se os provisórios, corte dos direitos e garantias fundamentais, exigência de castigo sem demora (e sem garantias), sanções midiáticas, estigmatização e segregação dos estereotipados e dos parecidos, humilhação pública de suspeitos ou acusados, vingança, intensificação da dor, lógica do direito penal do inimigo etc.”, como solução para conter e combater a violência e a criminalidade.

O poder punitivo “foi transformado numa espécie de religião, visceralmente fanática, orientada pelo e para o castigo vingativo (“diminuição da maioridade penal, penas exageradíssimas (40 anos ou mais), criminalização da posse de drogas para uso pessoal etc.”).

A primitiva exacerbação punitiva passou a ser a solução para uma sociedade desesperada e impotente, que não sabe o que fazer para combater a gravíssima crise de insegurança. Com o populismo penal, a insegurança pública tornou-se uma mercadoria de troca “entre a população (que vota) e o político (que depende do voto para sua eleição”, provocando “uma das maiores metamorfoses na política criminal”.

O próprio Estado adota o discurso populista e incorpora algumas de suas práticas (novas leis penais, mais policiais, mais prisões etc.), tendo em vista que “não está em condições de atender às necessidades básicas de grande parcela da população”, nem de satisfazer “as reivindicações populares ou institucionais”, a ponto de já se falar “em governança por meio da gestão da criminalidade”.

O populismo penal tem na “politização (partidária, governamental) da política criminal (e, por conseguinte, da punitividade)” uma de suas marcas registradas, visando a maximizar o apoio popular”, porquanto “governa-se de acordo com os referenciais emergentes da política criminal que consistem na manipulação das emoções mais primitivas do ser humano (medo e rancor, ou seja, medo e vingança)”.

Com isso, o poder político “vem conseguindo elevados índices de apoio popular para a expansão do poder punitivo”, explorando as “representações do imaginário popular, construídas a partir das suas emoções” e utilizando técnicas sofisticadas de manipulação, visando a “alcançar o consenso ou o apoio da população para medidas repressivas de mão dura, exageradas, desproporcionais”.

De fato, governa-se “de acordo com referenciais emergentes da política criminal”, que “consistem nas emoções mais primitivas do ser humano (medo e rancor, ou seja, medo e vingança)”.

Da politização da punitividade fazem parte “pressão contra juízes, demandas de mudanças legislativas, promessa de mais policiais e mais segurança, críticas ao funcionamento da Justiça ‘benevolente’, movimentos em redes sociais, mais autonomia para a polícia, fim das garantias, polícia de esquina, diminuição da idade penal etc. O cunho eleitoreiro desse tipo de discurso está mais do que evidenciado”.

Luiz Flávio Gomes denuncia que a intimidação é exercida “a ponto de o juiz ter medo de liberar pessoas presas, mesmo quando não devam ficar presas. Os juízes estão deixando essa tarefa para os tribunais, por não terem coragem de enfrentar a pressão midiática e/ou política”.

Além disso, “muitos juízes estão sendo estigmatizados pelo populismo penal midiático e isso coloca em risco, cada vez mais, a garantia da justiça imparcial e independente”, porquanto, “garantias como proporcionalidade, taxatividade, lesividade (ofensividade) ou intervenção mínima estão se convertendo para os juízes e legisladores em simples tigres de papel”.

Por força da pressão midiática, “grande parte dos juízes está se engajando (tornando-se um combatente) na ‘luta’ (guerra) contra a criminalidade massiva (alguns voluntariamente, outros por submissão à mídia), mandando para os cárceres uma quantidade exorbitante de acusados presumidos inocentes (corpos sem almas, sem cultura ou ‘vidas com corpos sacrificáveis’, como diz Svampa), que lá aguardam, durante meses ou anos, a sentença final, com certa frequência absolutória”.

Trata-se de um “direito penal autoritário ou máximo, com a expansão descontrolada do sistema penal” dirigido desproporcionalmente “aos grupos minoritários carentes, que passam repetidamente pela prisão durante o curso de sua vida com devastadoras consequências sobre os indivíduos, família e bairros”, “envolvendo formas de ‘crueldade’, onde o objetivo é ter prazer na dor dos outros”.

Há, no Brasil, uma “cultura autoritária”, tendo em vista que “o uso da violência em nossa sociedade é ‘legitimado’ desde a infância, como corretivo aos primeiros desvios, incutindo no indivíduo a ideia de que a melhor maneira de lidar com a transgressão é o castigo corporal, a repressão (a degradação, a humilhação), e que isso irá regenerar e educar o transgressor, sustentando um ciclo de abusos e de agressividade sem fim”.

É essa cultura que justifica “o apoio à polícia para invadir uma casa, bater em um suspeito e em um preso que tenham tentado fugir ou atirar em um suspeito ainda que desarmado”.

O que se deve criticar “é o excesso, o desproporcional, o uso indevido da lei penal para ocultar a incapacidade do poder público de gerir os mais graves problemas sociais”.

O fato é que, como destacado por Flávio Gomes, “a política de endurecimento das normas de natureza penal e do incremento do corpo de agentes públicos de repressão fomenta o engrandecimento do aparato repressivo, tanto no âmbito estatal como também no privado; mais pessoas investem mais dinheiro em segurança, alarmes, cercas elétricas, câmeras, trancas e armas. E o governo investe dinheiro em presídios, viaturas, policiais etc.”.

A “politização da segurança pública, da violência e do medo”, difundindo “a ideia de que tudo pode ser resolvido pela cultura do temor e do controle, que legitimariam mais intervenções punitivas”, “longe de resolver o problema, o agrava, porque essa política incentiva a fuga do social e do político”.

* Estudo elaborado com base na obra “Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico”, de GOMES, Luiz Flávio e ALMEIDA, Débora de Souza de. São Paulo: Saraiva, 2013.

Publicado em 15/07/2014 -

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