Por mais de uma década, as teses sobre os inempregáveis e o fim do emprego formal hegemonizaram o pensamento neoliberal no Brasil. Diante do ridículo dinamismo econômico, acompanhado por uma despreparada opção pela abertura comercial, produtiva e financeira, a espiral de crescimento do desemprego, da informalidade e do desassalariamento regulamentado foi tratada pelos governos da época como um fenômeno natural e intrínseco aos novos tempos modernos. Frente à perspectiva tecnológica, inclusive, não haveria muito que fazer. Quando muito, se conformar com a tendência intrínseca dos inempregáveis.
A proposição da flexibilização do mercado de trabalho e a defesa do autoemprego emergiram rapidamente como uma espécie de tábua de salvação dos que fracassavam na disputa por um posto de trabalho. Nesses termos, a vítima – expressa pela expansão do excedente da força de trabalho – era transformada em responsável toda vez que se opusesse à modernidade neoliberal. Modernidade essa que somente ousou flexibilizar o direito do trabalho, jamais o direito da propriedade.
Com isso, qualquer defesa de medidas como a elevação real do salário mínimo ou a redução da jornada de trabalho era logo identificada como sinal de atraso. Ou seja, a volta aos velhos tempos da inflação alta e do protecionismo jurássico. Assim, o Brasil assistiu à queda contínua da participação dos salários na renda nacional, ao mesmo tempo em que a precarização tomou conta do funcionamento do mercado de trabalho.
Em 2004, por exemplo, a renda do trabalho respondeu por 39,3% de toda a renda nacional, enquanto em 1990 era 45,3%. Na mesma toada, o emprego formal perdeu posição para o informal, enquanto o desemprego pulou de menos de 3% para 9% da força de trabalho ao longo dos anos de 1990. O mercado interno, em contrapartida, sofreu o impacto regressivo das opções neoliberais, com exclusão de parcela significativa da geração de jovens de encontrar no trabalho decente a possibilidade da ascensão social. Da condição imposta de inempregável, a ilegalidade e a violência se ofereceram rapidamente como oportunidades crescentes na difícil transição desde a adolescência para a vida adulta, especialmente nas grandes regiões metropolitanas do país.
Somente a partir do início do século XXI que o abandono das teses neoliberais permitiu oxigenar a economia brasileira, favorecendo a expansão quase duas vezes maior que a verificada nos anos 1990. Simultaneamente, a volta do dinamismo econômico foi seguida por políticas de defesa do salário mínimo e da legislação reguladora do mercado de trabalho. O recente e contínuo aumento do salário mínimo acima da inflação vem ocorrendo sem mudanças na inflação. Ao contrário das teses neoliberais, a ampliação do valor real do mínimo foi acompanhada do forte crescimento do emprego formal. Não houve, ainda, explosão da folha de pagamento do setor público, nem nos pequenos municípios; tampouco a quebra de micro e pequenas empresas. Destaca-se que mais de 2/3 dos empregos formais gerados no Brasil de hoje são provenientes dos micro e pequenos negócios.
A inconsistência das teses neoliberais é comprovada, mais uma vez, pela força da realidade nacional. A parcela salarial voltou a recuperar-se em relação à renda nacional. Há, ainda, muito que repor, pois o estrago na década de 1990 foi profundo e precisa de continuidade do crescimento econômico sustentável para a reconstrução do país em novas bases. Isso implica olhar o futuro com lentes adequadas, não apenas pelo espelho retrovisor. Para as próximas duas décadas, o Brasil alcançará o auge demográfico em 2030, quando ingressará na fase inédita de redução absoluta da população, exigindo avanços inclusivos para além do trabalho. Como a base das novas ocupações concentra-se no terciário – expresso pelo trabalho imaterial – sabe-se que este não mais precisa de um local determinado e fixo para a sua realização, conforme observado na agropecuária, indústria e construção civil. Nos serviços, cada vez mais informatizados, o trabalho é realizado em qualquer lugar e horário, o que torna insatisfatório o sistema atual de regulação das relações de trabalho.
Atualmente, a jornada de trabalho não somente está mais intensa no local de sua realização, como também terminam sendo levadas para casa as demandas informacionais de trabalho (telefone celular, computador, internet etc.). Tudo isso representa ganhos de produtividade cada vez mais fundados no trabalho imaterial, mas que continuam ausentes das negociações coletivas de trabalho dos sindicatos, e tampouco tributados pelo governo. O resultado é mais concentração da renda e riqueza, quase nada percebida pelas medidas de contabilidade social que ainda não captam a produtividade imaterial proveniente da ocupação de alguém plugado por 24 horas ao dia no trabalho.
Esse supertrabalhador requer outro padrão de segurança social e trabalhista. A Consolidação das Leis do Trabalho procurou, no passado, dar conta do trabalho material. Para o novo trabalho imaterial, urge consolidar um novo capítulo nas leis sociais e trabalhistas do País. De um lado, a postergação do ingresso no mercado de trabalho para depois dos 20 anos de idade, conforme atualmente perseguido exclusivamente pelos filhos dos ricos. Eles entram mais tarde e, por isso, mais preparados para ocuparem os principais postos de trabalho, enquanto os filhos dos pobres encontram-se condenados a terem de trabalhar muito cedo, e, por isso, sem educação adequada. A baixa escolaridade e ocupação nos piores postos de trabalho do país são as consequências que continuam a reproduzir desigualdades sociais.
De outro lado, a necessária vinculação da escola ao longo da vida, não somente para as fases da infância, adolescência e da vida jovem. A sociedade pós-industrial torna a vida e o trabalho mais complexos, repondo a expectativa de que o trabalho imaterial possa contar com nova regulação pública. A consolidação das leis sociais pode ser uma excelente oportunidade nesse sentido.
Autor: Márcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).