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Comércio da rua José Paulino, em São Paulo

Comércio da rua José Paulino, em São Paulo

Fui procurar meu primeiro emprego aos 18 anos. Felizmente, a condição financeira da minha família nunca demandou que eu trabalhasse para ajudar no orçamento da casa, então, tive esse privilégio. Eu havia feito seis meses de Direito, mas tinha trancado o curso para voltar a estudar para prestar vestibular para Publicidade. Enquanto estava no cursinho, resolvi trabalhar para poder ter meu próprio dinheiro. Como não tinha experiência nenhuma, fui para o shopping e saí entregando currículo. Era 2011.

Consegui emprego numa loja de roupas caras, dessas que vendem casaco de pele (vendia, na época), e blusinha básica a R$ 150. Eles aceitam qualquer pessoa mesmo sem saber se você é bom com público, se você atende bem etc. Não porque eles fornecem treinamento, mas porque a rotatividade é alta o suficiente para um funcionário ruim em piso de loja não machucar o lucro.

Comecei meu trampo e tudo ali me parecia contra-intuitivo, começando pela comissão individual e o sistema de “vez”. Para quem não sabe, em 90% do varejo, quando você entra na loja, é “a vez” de um vendedor. É a vez dessa pessoa de atender um cliente. Se você não leva nada, ela perde a vez.
E tem regras esdrúxulas do tipo: se a cliente só perguntar de um item, mas não mexer em nada, você não perde a vez e pode atender o próximo cliente. Foi para o banheiro? Perdeu a vez. O cliente passou 15 segundos na loja mas mexeu numa jaqueta? Perdeu a vez.

“Cansei de ver vendedor escondendo peça para o outro não roubar a venda.”

Numa segunda-feira, quando entram 10 pessoas na loja o dia inteiro, cada vez é sua chance de bater sua meta diária. É, tem meta individual diária e mensal de venda. Isso cria um ambiente escroto onde todo mundo passa perna em todo mundo, ninguém é amigo de ninguém e teus colegas te esfaqueiam pelas costas.

Quando um cliente reservava peça e vinha buscar no horário que a pessoa que lhe atendeu não estava, minha Nossa Senhora. Era gritaria. Cansei de ver vendedor escondendo peça para o outro não roubar a venda. Rolava briga feia.

Ah, o esquema de trabalho era 6×1. Trabalha seis dias, folga um. Dois domingos por mês de folga. Não existia folga de sábado. Simplesmente não existia. Era o dia mais cheio, e todo mundo queria estar na loja para vender e bater meta. Sábado tinha meta de R$ 10 mil por pessoa. O salário era o mínimo da época, R$ 545, mais 3% do que você vendeu. Eu ganhava uns R$ 900 reais quando conseguia tirar comissão. O mínimo da loja, já com descontos, era pagar R$ 645. Num mês muito bom de comissão, cheguei a fazer R$ 1.300.

Ah, e só recebia comissão se vendesse acima de R$ 20 mil. Vendeu R$ 21 mil? Parabéns, ganhou comissão. Vendeu R$ 19 mil? Sinto muito. As metas geralmente eram R$ 40 mil.

Ou seja, você ficou lá, trabalhou o mesmo tanto de horas, mas recebe menos. Às vezes, você não tem o conhecimento de um vendedor mais experiente, não tem cliente habitué, só pegou uns “caroço” o mês inteiro, todo mundo passava a perna em você na loja. Azar o seu. Trabalhou igual? Sim. Mas ganhou menos.

“E tome na orelha dos gerentes por vir com roupa ‘de fora’.”

Nesta loja, em particular, os gerentes faziam a gente comprar as roupas pra usar como uniforme, o que é crime. A gente tinha 40% de desconto de funcionário, e eles tratavam isso como um puta favor que a loja estava fazendo por nós. Porque, né, você tem que usar as roupas da marca para o cliente achar bonito e querer comprar também. E se não tava usando pelo menos uma peça da loja, era bronca.

Agora lembra que as blusinhas custavam R$ 150? E a gente ganhava R$ 700 sem comissão? Vê se cabe no orçamento isso? E tome na orelha dos gerentes por vir com roupa “de fora”.

Um belo dia, o estoquista da loja pediu demissão e, obviamente, nas semanas seguintes tudo começou a virar um caos. Pilhas desarrumadas pelo estoque, ninguém achava tamanho de merda nenhuma, todo mundo pisando em saco de roupa no estoque para conseguir entrar lá. Minha gerente teve então a brilhante ideia de mandar todo mundo passar a madrugada inteira arrumando o estoque. Detalhe: não havia banco de horas. Não recebíamos hora-extra. Não deram folga para compensar nem nada.

O povo ficou lá até duas da manhã, e eu fui para o sossego do meu lar. Falei pra minha gerente: “Maria, faz as contas comigo. Esse mês a gente vendeu mais de R$ 200 mil pra essa marca. Tira os nossos salários, ainda sobram mais de R$ 180 mil. Tu acha mesmo que o dono dessa merda não tem R$ 750 para pagar um estoquista? Ele tá pouco se fodendo para você, para mim, para todo mundo. Se você vai ter que dormir na loja porque o metrô já fechou, e a linha que chega na tua casa não tem noturno, ele está pouco se fodendo de dentro do Porsche dele. Deixa essa merda explodir e vir a supervisão aqui na loja. Daí tu pede pela vigésima vez um estoquista”. Eu tinha 18 anos, mas consciência de classe sempre tive.

Não adiantou nada. Todo mundo ficou – eu me retirei porque ameacei processar ela e a marca por me segurar lá depois das 22h30.

Teve também o sábado em que a loja ferveu, sério, ferveu. Cada vendedor atendendo umas 3 pessoas diferentes. Aí, quando passou aquele rebuliço, vimos que duas peças tinham sumido da arara de catálogo, onde ficavam as peças mais caras da coleção. Dois coletes de pele de coelho, R$ 690 reais cada um. A gerente veio soltando fogo pelas ventas para cima de todos nós. Berrando mesmo. “Como que vocês deixam isso acontecer? Vocês não são pagos pra isso!”

E eu: “Ué, mas era para ter tocado o alarme da peça, é impossível tirar”.
– “O alarme está desligado”.
– “Então pede para ver a filmagem da segurança”.
– “As câmeras são de mentira”.

Queria descontar do nosso salário. Eu mandei ela tentar, mas avisei que entraria com processo. A loja cagando para o sistema de segurança, tudo desativado ou de mentira, mas a culpa e os berros e o abuso moral vinham para cima dos fodidos que estavam ajudando dondoca a escolher calça jeans enquanto a outra dondoca roubava a peça.

Ah, esqueci de falar dos benefícios! Como todo mundo sabe VT desconta do salário, e nosso VR era de R$ 40, Q U A R E N T A reais por mês. Não dava nem para comprar uma coxinha por dia. Nem vou comentar quantas vezes eu fui assediada em horário de trabalho, e meus gerentes nada fizeram pra me ajudar ou defender.

Mas tinha cliente que eu via chegando e me escondia no estoque até ir embora. Perdia vez, perdia venda, perdia tudo, mas não conseguia passar pela humilhação. Outra opressão: trabalhar o dia inteirinho em pé. Não pode sentar. Não pode encostar no balcão. Nada. Eu que sempre tive problema de microvarizes, às vezes, ia pro banheiro para ficar 10 minutos sentada.

O discurso da meritocracia reinava o tempo todo. Se não batia meta era porque não se esforçava. Se PV (peça por venda, isto é, quantas peças você vendia por transação) não era cinco, é porque não se esforçava. Se não queria fazer hora-extra de graça para bater meta, era porque não se esforçava. Se faltava funcionário e estava tudo uma zona, era porque não se esforçava. Os gerentes diziam que “davam a oportunidade” de a gente trabalhar fora do horário para bater meta.

E, vejam, eram pessoas simples. Gente nova, gente que o sonho era fazer uma faculdade. Esse discurso idiota vinha todo de cima, era vendido como um sonho impossível, e a galera toda comprava. Porque se um dia você se esforçar o suficiente, pode alcançar a gerência e, aí sim, ganhar R$ 2 mil e levar na orelha não de um gerente, mas de um supervisor.

Fiquei seis meses nessa loja e me arrependo demais de não ter entrado com um processo trabalhista. Não bastasse trabalhar para empresário babaca encher o cu de dinheiro, tinha cliente babaca que chegava com peça de dois anos atrás querendo trocar e ainda ficava puto que não podia. Gente que vinha trocar peça de R$ 1.500 obviamente roubada – a gente tinha como saber pelas etiquetas.

“Todo mundo está lutando uma batalha que você não conhece.”

Esse tipo de trabalho precário é absolutamente comum e tende a piorar conforme o tamanho da rede. Não que eu não tenha trabalhado para pequenas empresas com grandes escrotos em cargos de chefia, mas quanto maior a necessidade de trabalho de venda, mais descartável você é. E ainda tem uma galera do telemarketing que se fode muito mais. Especialmente porque boa parte deles é terceirizada, o que precariza não só o atendimento em si como também as condições de trabalho.

Fica aqui meu pedido: tenham consideração da próxima vez que entrarem num estabelecimento de varejo. A pessoa que está te atendendo provavelmente está cansada, engoliu qualquer porcaria barata no almoço em 15 minutos, não tem tempo de ficar com os filhos com uma folga por semana e vai fechar as contas apertada no fim do mês. Sei que é um saco, mas sejam, no mínimo, simpáticos com a galera. Não é culpa deles que eles têm que te vender cartão ou fazer oferta de expansão do seu pacote de TV. Às vezes, a gente está aqui no conforto do nosso lar recebendo ligação de alguém que passa o dia todo num cubículo ligando para estranhos, ouvindo merda para ganhar um salário horroroso. Todo mundo está lutando uma batalha que você não conhece.

Fico pensando que eu passei por tudo isso em 2011, quando a economia ia bem o suficiente para o shopping viver cheio, pra eu poder me dar ao luxo de sair desse emprego e achar outro sem muita dificuldade. O dólar estava a R$ 1,80 e nós tínhamos Ministério do Trabalho. Se naquela época já era assim, agora com a precarização do trabalho e a reforma da previdência, isso só vai piorar.

Como não existe muita esperança de recuperar direitos trabalhistas, nos resta soltar as pedras e estender a mão para quem cruza o nosso caminho.

 

Fonte: The Intercept Brasil | Escrito por: Debora Nis | Foto: Bruno Santos/Folhapres

Publicado em 3/05/2019 - Tags: , ,

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