Em 1953, depois de seis anos de lutas da campanha O petróleo é nosso, Getulio Vargas formalizava, com a Lei 2.004, a criação da Petrobras. Ato que, nas suas palavras premonitórias à nação, constituía um "novo marco da nossa independência econômica".
A trajetória da Petrobras desde então dispensa comentários sobre o acerto daquela decisão, que oficializou a derrota das forças conservadoras que questionavam a capacidade do país de desenvolver, autonomamente, sua indústria petrolífera.
Quase 56 anos depois, a apresentação da proposta do governo Lula relativa ao marco regulatório do petróleo, anunciada para a próxima semana, traz para a sociedade brasileira um debate que tem implicações e simbolismo similares.
Com efeito, o aproveitamento da província petroleira do pré-sal – que pode transformar o Brasil em grande produtor e exportador de derivados do petróleo – abre a possibilidade histórica de um salto qualitativo sem precedentes no desenvolvimento econômico e social do país. Por isso é de extrema relevância que o debate sobre a matéria considere algumas questões críticas que definirão quanto, como e em benefício de quem serão explorados esses extensos recursos.
A primeira dessas questões diz respeito ao controle das reservas e de seu aproveitamento. É importante respeitar os contratos relativos às áreas já licitadas sob o sistema de concessões, que já privatizaram as reservas provadas e que abrangem 29% do total. Isso é fundamental para preservar a credibilidade internacional do país. Mas igualmente fundamental é assegurar o controle do Estado sobre os 71% restantes. Esta é uma opção estratégica que pode ser viabilizada pelo sistema de partilha da produção.Com isso se asseguraria o poder de decisão do Estado brasileiro sobre a intensidade e modalidade de exploração das megarreservas, bem como sobre a apropriação, distribuição e destinação dos seus resultados.
Um segundo aspecto chave é o aumento da participação do Estado na renda do petróleo e avinculação da receita obtida a programas de investimento e políticas voltadas para os objetivos estratégicos de desenvolvimento do país. Os recursos do petróleo podem financiar a ampliação e integração da infraestrutura logística e energética e a criação e desenvolvimento de uma base científico-tecnológica autônoma, que dê sustentabilidade à expansão da economia. Podem também contribuir decisivamente para a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais. Podem permitir o reforço da capacidade de defesa e gestão soberana do Estado sobre o território nacional – incluindo a plataforma marítima e o espaço aéreo – e seus recursos. E podem viabilizar a revolução educacional que o país necessita para avançar na transformação produtiva e na homogeneização da sua estrutura social.
O caráter não renovável dos recursos petrolíferos impõe o equacionamento de uma terceira questão central: a garantia de usufruto dos benefícios de sua exploração pelas gerações futuras. O que significaria destinar parte das rendas do pré-sal ao fortalecimento a longo prazo do sistema de previdência social e à preservação dos sistemas ecológicos mais frágeis e da biodiversidade.
Um quarto aspecto refere-se ao fato de que, pela sua dimensão e significado estratégico, os recursos do pré-sal são um patrimônio de todos, do conjunto da nação. Isso implicaria, preservando os níveis de receita e a participação diferenciada dos atuais beneficiários na renda futura, redefinir, para as novas áreas do pré-sal, os critérios e modalidades de repartição dos royalties do petróleo, cuja legislação é anacrônica, inadequada e gera uma hiperconcentração das receitas e uma distribuição assimétrica, injusta, sem transparência e sem controle social.
Em quinto lugar, seria oportuno fortalecer a Petrobras, incluindo, se possível, o aumento da participação do Estado no seu capital social total.
A Petrobras tem um acúmulo excepcional na área tecnológica, tem investido pesadamente na explo/p>
ração, produção e refino de petróleo e desempenha um papel vital na diversificação da nossa matriz energética e na alavancagem do investimento público. É uma empresa estratégica para o desenvolvimento do Brasil.
Por último, será necessário criar instrumentos de gestão dos recursos que evitem os efeitos macroeconômicos indesejáveis – como a chamada "doença holandesa" – e desvios de finalidade em sua aplicação.
A criação de um fundo soberano, nos moldes, por exemplo, da experiência norueguesa, insere-se nessa perspectiva.
A criação da Petrobras não esteve isenta de conflitos de interesse entre setores da sociedade portadores de diferentes visões político-ideológicas. Em outra escala, mas com certa similitude no que tange aos seus protagonistas, esses conflitos se reproduzem hoje. Da visão que prevaleça dependerá o grau em que o pré-sal seja vetor estratégico do nosso desenvolvimento ou transforme o Brasil em mais um exemplo trágico da "maldição dos recursos naturais"
Autor: Aloizio Mercadante – economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, senador pelo PT de São Paulo e líder do governo no Senado.