Por Cida Bento, doutora em Psicologia e coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT)
É preciso identificar as forças políticas conservadoras e reagir a elas, nas ruas e nas urnas.
Parece até que há um objetivo explícito e deliberado de mostrar aos movimentos sociais que eles não contam no cenário político atual.
Que seus direitos, conquistados nas ruas, podem ser derrubados com qualquer canetada.
Que os órgãos criados para tratar destes direitos podem ser extintos e recriados numa lógica em que se trocam os profissionais e se altera a concepção do órgão, como se fosse uma estrutura burocrática.
E a sociedade civil reage. Em diferentes partes do País, mobilizam-se grupos que atuam com gênero, raça, etnia, orientação sexual, meio ambiente, moradia, tortura, violência de estado, acesso à terra e tantos outros temas afeitos aos direitos humanos, denunciando a pauta reacionária e impopular que não para de avançar.
Dentre estes grupos, encontram-se os movimentos de mulheres negras, o quilombola, os universitários negros, os religiosos de matriz africana, a juventude negra e periférica, o movimento de mães contra o genocídio dos jovens negros. Eles compõem uma parcela expressiva da sociedade civil brasileira, atenta e mobilizada contra o retrocesso.
Esta mobilização tem tido baixa ou nenhuma visibilidade na grande mídia. Mas prolifera nas redes sociais.
Provavelmente, o esforço em invisibilizar as expressivas manifestações destes diferentes grupos se deve ao fato de que suas reivindicações escancaram a gravidade do retrocesso em curso. Retrocesso que desconsidera as inúmeras políticas criadas na última década para combater a violência racial e a desigualdade, num dos países mais desiguais do mundo.
Isso fere e avilta a democracia.
Democratizar os espaços institucionais a partir da relação com a sociedade civil significa assegurar a participação de lideranças reconhecidas e legitimadas neste território. Significa possibilitar a disputa de outras visões de mundo, prospectar sobre que país queremos para nós e nossos descendentes, que tipo de desenvolvimento almejamos, como vamos lidar com a nossa rica pluralidade cultural e com o meio-ambiente.
As decisões, normas, planos e programas que emanam destes lugares institucionais afetam uma gama variada de grupos com trajetórias, identidades, interesses e contribuições diversificadas e impactam seus direitos, muitas vezes conquistados após muita luta, nas ruas. Não podem ser decisões tomadas a partir de premissas e processos viciados, excludentes e anti-democráticos.
A participação política e social desses diversos grupos, por si só, questiona a existência de privilégios.
O medo do outro se junta ao medo de perder privilégios. E os direitos conquistados ao longo da história são atacados. E muita luta é necessária para estancar o retrocesso.
A luta contra o racismo
A população negra é “quinhentona” no Brasil e, desde sua chegada, luta contra a opressão. Dos pouco mais de 500 anos que tem o País, quase 400 anos foram vividos sob a égide da escravidão negra; são 4/5 de nossa história, tempo em que “trabalho era coisa de preto”.
Neste processo de luta negra, que avança ao longo dos séculos, é importante ressaltar que algumas conquistas importantes foram alcançadas, na última década, e sua efetivação vem sendo alvo da ação de diferentes segmentos do movimento negro.
A obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira na educação regular, que alterou a LDB (Lei 10 639/03), é uma destas conquistas.
A aprovação, em 2010, do “Estatuto da Igualdade Racial”(Lei nº 12.288), que versa sobre igualdade de oportunidades, pode ser considerada outra destas conquistas.
A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, em 2012, declarando a constitucionalidade das ações afirmativas para promover a igualdade, e, no mesmo ano, a sanção da lei de cotas nas universidades federais (Lei 12.711) representam avanços.
A reserva de 20% das vagas em concursos públicos da administração direta e indireta da União (Lei nº 12.990/14), se replicada por outros órgãos municipais e estaduais e pela inciativa privada, pode representar uma efetiva resposta à exclusão de milhares de jovens negras e negros de posições qualificadas no mercado de trabalho.
A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, (Lei 10.678), e de outros órgãos tais como a Secretária de Alfabetização, Diversidade e Inclusão configuraram-se em iniciativas para institucionalização das pautas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial, no âmbito do poder público.
Estas são parte das conquistas do movimento negro, no período recente, e algumas delas tiveram impacto expressivo na condição de vida da população negra, como por exemplo o fato de que triplicou a presença de jovens negros no ensino superior, na última década. Do total de estudantes negros de 18 a 24 anos, 45,5% cursavam o ensino superior em 2014, contra 16,7% em 2004.
Muita luta ainda precisa ser feita, no entanto, pois este percentual mantinha-se em um patamar menor do que o percentual de brancos no ensino superior dez anos antes (47,2% em 2004), conforme dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2015.
Nesta mesma última década, aumentou a violência letal contra a juventude negra, em mais de 30%, caracterizando o que temos chamando de genocídio e, igualmente, aumentou a violência contra as mulheres negras (54%). Com o retrocesso que observamos agora, o quadro só tende a piorar.
O que fazer diante deste cenário? O que sempre fizemos.
Mobilizarmo-nos, articular nossas ações em diferentes esferas para assegurar e, quando possível, ampliar os direitos e conquistas da sociedade civil no processo democrático.
Além disso, nos apropriarmos de uma das nossas principais forças, enquanto segmento majoritário do Brasil: o poder do voto.
Na última década, em períodos pós-eleição, a grande mídia visibilizou, nem sempre de maneira positiva, o poder decisivo do voto negro, feminino e, especificamente, dos nordestinos.
Exemplificando, em 2010, a estudante de direito Mayara Petruso foi condenada a um ano e cinco meses de prisão por uma postagem ofensiva no Twitter. “Nordestisto [sic] não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado”, publicou. A pena dela foi convertida em prestação de serviços para a comunidade.
A irritação desta jovem, que apareceu também em postagens de tantos jovens da elite brasileira, é que a despeito de todo o privilégio que usufruem, não podem mexer com uma dimensão decisiva: o voto do povo brasileiro.
Neste sentido, mais do que nunca, nos cabe desenvolver esforços para que o voto seja expressivo daquilo que representa uma resposta ao retrocesso atual e um esforço na retomada do processo democrático, com todos os seus desafios.
Precisamos alterar, por exemplo, o perfil dos deputados e senadores, majoritariamente homens, brancos, com média de 50 anos. As mulheres representam menos de 10% do total de parlamentares, os negros idem, e as mulheres negras cerca de 2% deste total, segundo pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, com relação às eleições 2014.
Este cenário dificulta o avanço de pautas voltadas para gênero, raça, etnia e tantas outras ligadas aos direitos humanos.
Precisamos discutir com nosso povo que nossos votos precisam ser inspirados menos em discursos pomposos e politicamente corretos e mais assentados na história, nas ações, nas trajetórias dos candidatos dos diferentes partidos no campo da igualdade racial e dos direitos humanos.
É preciso identificar quais forças políticas estão apostando no retrocesso, no conservadorismo. E responder a elas, hoje nas ruas e amanhã, nas urnas.
B.B.King, quando perguntado sobre como conseguiu atingir a nota perfeita do blues em sua guitarra, respondeu: “atuando de maneira disciplinada, persistente diante do objetivo que tinha – atingir a nota perfeita”. Traçando um paralelo com a atuação da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais, a persistência e o foco darão o retorno que o Brasil precisa e merece.
Sigamos, pois.